Eu tenho orgulho de ter visto a blogosfera política brasileira nascer, e mais orgulho ainda de vê-la hoje madura, forte, plural, mais combativa do que nunca. Foi um parto difícil, num momento embaraçoso. Em 2005, quando estoura o escândalo do mensalão, emerge Ricardo Noblat, com um blog logo incorporado ao Estadão. Antes da sociedade perceber que, além de um deprimente caso de caixa 2, havia uma instrumentalização midiática para a realização de um terceiro turno político e um golpe “branco” no governo Lula, a perplexidade era generalizada. Até porque não havia nenhum contraponto. A mídia reinava absoluta. Foi o auge do império dos colunistas, quando a duvidosa verve de meia dúzia de escribas corporativos correspondia ao que se chamava, pomposamente, de opinião pública. Até o delicado Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa, havia entrado na onda, publicando catilinas diárias contra Lula e o PT, sem fazer a mínima ponderação sobre o papel da mídia. O único blog político lido em grande escala era o de Noblat, que viveu seus “anos de ouro”. Hoje Noblat é um colunista decadente, sem pegada, um melancólico propagador de fofocas inventadas por ele mesmo.
A blogosfera “nossa”, anti-corporativa, majoritariamente de esquerda, progressista, ainda não existia. Não enquanto o movimento significativo que logo mais iria se tornar. Eu já operava o Óleo do Diabo, atualizava o site Arte e Política e publicava artigos em alguns sites mais conhecidos. Mas ainda éramos pequenos demais.
Até que um dia, eu vi algo espantoso. Dines escrevera um texto especialmente amargurado, repetindo os clichês antipetistas da grande mídia, boa parte deles ancorado em informações dúbias, e a caixa de comentários daquele post simplesmente explodiu. Até então, eu só via, no Noblat, no Observatório, em toda parte, comentários da direita raivosa. Parecia que a esquerda tinha desaparecido do país, envergonhada com o mensalão. Quando eu vi aqueles comentários, percebi que algo de novo nascia. Dito e feito. A partir daquele momento, todo post no Observatório enchia de comentários lúcidos, críticos, racionais, inteligentes, escritos por um grupo impressionantemente plural: garçons do Recife, donas de casa de Porto Alegre, engenheiros, funcionários públicos. Intelectuais também comentavam, mas houve uma pequena revolução: pela primeira vez, a internet permitia que pessoas “comuns”, estranhas ao circuito classe média zona sul do Rio e Higienópolis de Sampa, se manifestassem. Quando o fizeram, mostraram muito mais bom senso e educação do que as bestas feras que comentavam no blog do Estadão; e o melhor: sempre na contramão da hegemonia midiática.
As pessoas, em suma, diziam: “peralá! tudo bem, o PT errou e tal, mas e aí? o que vamos fazer agora? Vamos derrubar o Lula? FHC não errou também? Não cometeu erros muito piores? Lula não está fazendo um bom governo?” Mais que isso, as pessoas começaram a suspeitar que o seu voto, a sua vontade, estavam sendo violados por setores que, historicamente, sempre conseguiram engambelar o povo, seja pela astúcia, seja pela força. Lula podia ter todos os defeitos, mas era “nosso”, era muito melhor do que o presidente “deles”.
Enfim, houve o que deveria ser entendido como Justiça. Justiça não é condenar sumariamente, e sim pôr as ações humanas numa balança, ponderar, com espírito aberto, objetivo, prático, compreensivo, generoso, magnânimo. É fazer exatamente o contrário do que faz a nossa mídia, o contrário do que fez o STF durante o julgamento do mensalão.
Mas voltando à blogosfera. Ela cresceu, abastecida pelo combustível humano, um público crescente. Por trás do processo, está ainda o que poderíamos chamar de “revolução da maturidade”. Até os anos 70, e mesmo nos anos 80, os jovens sempre dominavam as manifestações políticas simbólicas. A partir de meados dos anos 2000, tínhamos uma juventude convenientemente dopada por décadas de imperialismo americano e cansada do radicalismo ideológico da geração anterior. Ou seja, totalmente desmotivada para a luta política. E eis que chega a internet, permitindo que pessoas de todas as idades – sobretudo mais velhas – exercessem a sua cidadania mesmo sem a disposição para sair na rua gritando palavras de ordem e empunhando bandeiras. O indivíduo pacato, de meia idade, de repente viu a chance de ser protagonista na luta ideológica da comunicação. E o foi, com incrível galhardia. A blogosfera política de esquerda nascera e dispunha de um exército intelectual. Um exército diferente, sem comando vertical, sem hierarquia, composto por gente calejada. Um exército de guerreiros livres, ligados entre si apenas por um punhado de velhas e boas ideias nacionalistas. Quase todos marcados pelo longo e terrível silêncio que se lhes impuseram, através da brutalidade dos coturnos, primeiro, e pelo poder de uma mídia concentrada e monolítica, em seguida.
Hoje a blogosfera está madura. A consolidação de um blog como o Diário do Centro do Mundo, do Paulo Nogueira, trouxe a elegância europeia, o cuidado profissional, o apartidarismo, a verve simultaneamente culta e popular, de que estávamos precisando. O Brasil 247 trouxe uma pegada comercial, grandiloquente, temerária. É como se víssemos um amigo sempre maltrapilho, solitário, decadente, aparecer num carro bonito, vestindo trajes elegantes, acompanhado por uma bela e atraente representante do sexo feminino.
Estou citando os que chegaram por último, visto que não preciso mencionar nossos colegas mais tradicionais, protagonistas das lutas políticas que temos travado desde alguns anos: o cada vez mais ferino, divertido e brutal Paulo Henrique Amorim; o incansável Eduardo Guimarães, com sua pontaria certeira; o ponderado mas sempre incisivo Luis Nassif; os queridos Azenha e Rodrigo Vianna, e tantos outros.
Tudo isso é muito bom para o nosso campo político, a esquerda progressista, nacionalista, desenvolvimentista.
Entretanto, há uma derradeira prova de maturidade que ainda estamos construindo. É uma prova cheia de dilemas, riscos e armadilhas, mas ao cabo a blogosfera conseguirá superá-los todos com sua pluralidade. A blogosfera progressista nasceu no meio de uma guerra da mídia contra o governo trabalhista de Luiz Inácio Lula da Silva. E se posicionou assertivamente ao lado do campo popular. Lula e Dilma tiveram o apoio que faltou a Getúlio e a Jango. Até hoje, esse apoio é o único contraponto que se pode encontrar para se ter uma visão balanceada de política e economia. Mas essa função da blogosfera, de ser um contraponto “governista” ao criticismo antigovernista da mídia também está sendo superada. Até porque a mídia não é sempre antigovernista. A grande mídia desempenha, às vezes magnificamente, a grande farsa da imparcialidade, sempre com objetivo de acumular munição para atacar de maneira mais fulminante. A blogosfera tem dificuldade para se libertar dessa dicotomia às vezes tão pobre de governo versus mídia, justamente porque parece uma guerra interminável. E o próprio governo parece satisfeito com uma situação em que apenas os dois têm voz: governo e mídia dominam o debate público, abafando todas as necessárias nuances. Por isso uma Lei da Mídia é importante, para que a sociedade brasileira tenha acesso a pontos-de-vista que não são nem os do governo, nem da grande mídia, mas de setores sociais relevantes, que possam contribuir para o progresso nacional.
Também nisso a blogosfera amadureceu, ou antes, ela ajudou a construir uma estabilidade política tão sólida que lhe permite fazer duras críticas à gestão de Dilma Rousseff sem, com isso, abrir espaços vulneráveis para a direita atacar pelos flancos.
É o que acontece na política de comunicação do governo, que é reacionária e obscurantista. A Secom dá mais dinheiro para jornais do que para a internet brasileira, uma das maiores do mundo. E aqui repito: o aumento de recursos federais na internet não é para abastecer nenhuma blogosfera “progressista”, e sim para irrigar toda a vasta rede de sites, blogs e portais independentes da web nacional: sites de história, portais de educação, blogs de movimentos sociais, blogs especializados em micropolíticas, em filosofia, arquitetura, cinema, música etc. O que é realmente absurdo é ver o governo dando mais dinheiro para jornais impressos, que atingem pouca gente, e cujos anúncios acabam no lixo no dia seguinte, do que publicar na internet, que não derruba árvores, os anúncios permanecem e há um ambiente democrático de interação. Mais que isso: a internet gera empregos. É, de longe, o maior gerador de empregos no ramo da comunicação social, ao contrário do mundinho cada vez mais decadente, repressor, baixo astral, das edições impressas.
Entende-se que as agências privadas de publicidade resistam em entrar na internet, por causa dos famigerados bônus de volume que recebem das grandes empresas de mídia impressa e televisiva. Mas as agências não têm a função social de fomentar a pluralidade política que tem o governo.
Seja como for, a blogosfera progressista, com todas as críticas que faz ao governo, mesmo sendo apunhalada pelas costas na questão da comunicação, ainda não tem, a meu ver, outra opção ideológica a não ser apoiar a presidenta em 2014. Não falo da opção de um punhado de blogueiros e sim da tendência inevitável de um movimento que reúne hoje centenas de milhares de pessoas.
Por exemplo, ontem o Estadão publicou um artigo que aborda a imagem dos candidatos a presidente junto ao mercado financeiro. Em determinado trecho, topamos com a seguinte afirmação:
Aécio desperta a confiança do setor [financeiro] em relação à condução da economia. “Ele é música para os ouvidos do mercado. Ele é visto como o resgate da agenda de FHC. É mais ortodoxo”, disse o economista de um banco estrangeiro.
Francamente, isso é de gelar a espinha. Se a crítica que a blogosfera faz à Dilma é justamente ceder demais ao conservadorismo, tudo o que não queremos é que o poder volte às mãos do próprio núcleo conservador. Sobretudo “este” núcleo conservador tucano, com suas diabólicas preferências por políticas recessivas. Nas últimas semanas, aliás, assistimos a um verdadeiro “freak show” neoliberal, com articulistas publicando textos em jornais de grande circulação, em que defendem o aumento do desemprego. Se os neoslibelês sempre foram odiados, agora que soltaram a sua franga anti-humanista em público, eles serão eternamente desprezados. Defender desemprego num país como o Brasil, onde o colchão de proteção social é mais fino que a antena de uma formiga, só encontra paralelo na decisão de Margareth Thatcher enquanto ministra da Educação, que, no auge de uma crise econômica na Inglaterra, mandou cortar o leite distribuído para crianças nas escolas.
Aécio Neves, apesar de sua pose de bom garoto – em contraste com a fama e a cara de mau de José Serra -, representa uma visão de mundo, em política e economia, profundamente conservadora. Se a Serra falta caráter, Aécio simboliza a extrema direita econômica do PSDB e seu despudorado entusiasmo por juros altos e desemprego.
Para 2014, devemos entender uma coisa: vai ter segundo turno, e será entre Aécio Neves e Dilma Rousseff. Campos e Marina serão apenas os bois de piranha da mídia e do PSDB para permitir que Aécio chegue ao segundo turno. Uma vitória no primeiro turno é um acaso com o qual seria estupidez contar. O embate político, hoje no Brasil, volta a ser entre direita e esquerda, e por isso mesmo devemos trabalhar para convencer a nossa presidenta de que ela precisa, desde já, adotar políticas mais corajosamente progressistas, em todos os campos. Se fizer isso, não contará apenas com o apoio burocrático de uma esquerda mais anti-tucana do que pró-dilma; conquistará não apenas o nosso cérebro, mas incendiará corações sedentos de esperança, esfomeados por mudanças, desesperados pelo desejo de enterrar, de uma vez por todas, esse maldito neoliberalismo colonial, que é apenas uma artimanha mafiosa para transferir nossa riqueza, nosso patrimônio, nossa soberania, para um punhado de imperialistas espertalhões.
Encerro o post citando o primeiro capítulo da Constituição Brasileira de 1988, acrescentando pequenos comentários.
TÍTULO I
Dos Princípios FundamentaisArt. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania [sem privatização];
II – a cidadania [sem criminalização da política];
III – a dignidade da pessoa humana [sem condenações espúrias no STF];
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa [com emprego pleno, e juros baixos];
V – o pluralismo político [com uma lei da mídia moderna].