Não sei se o Papa ajudou ou não a ditadura argentina, mas a gente sabe que a Igreja Católica, de maneira geral, foi um dos pilares (um outro foi a mídia) do golpismo brutal, assassino e totalitário que esmagou a democracia latino-americana durante boa parte do século XX.
Por isso, não nos causa nenhuma estranheza este editorial cínico do Globo sugerindo que o Vaticano pode dar uma “contribuição” ao futuro do continente através de sua influência junto aos pobres. É uma maneira nada sutil de atiçar os segmentos mais conservadores da Igreja a intervirem politicamente, o que seria uma insuportável agressão aos princípios básicos da democracia, que é a laicidade do Estado.
Em vez de produzir plataformas e ideias para ganhar eleitores, o conservadorismo prefere sempre uma solução não-democrática.
A comparação com a intervenção papal no desmonte do comunismo é uma falácia, mas mostra bem o grau de radicalismo conservador da nossa mídia. Comparar o regime comunista do Leste Europeu, fechadíssimo, sem eleições, com proibição absoluta de qualquer liberdade de imprensa, à realidade intensamente, radicalmente democrática da atual América Latina, revela a que ponto chegou o desespero dos setores que perderam o poder nos últimos 15 anos, com a ascenção de forças progressistas nos países latinos.
Abaixo, o editorial do Globo que torce por uma intervenção do Vaticano:
A missão latino-americana do Papa (Editorial)
O GloboAo demonstrar sua vontade de abrir novos caminhos para a Igreja, o Papa Francisco inspira enorme interesse. Chama a atenção sua clara opção pelos pobres, pela humildade e a simplicidade, a visível disposição de reformar a Cúria e enfrentar problemas espinhosos, como o da pedofilia entre o clero católico.
O Papa Francisco tem sobre os ombros a monumental tarefa de resgatar a credibilidade da Igreja, abalada também por problemas financeiros do Banco do Vaticano. Mas apenas a disposição de fazê-lo já lhe rendeu uma ampla frente de boa vontade.
A América Latina tem 42% dos católicos do mundo e grande número de pobres ainda não resgatados pela atuação dos líderes dos diversos países. Essa massa se tornou campo fértil para políticos populistas que garantem sua permanência no poder com manobras antidemocráticas e forte assistencialismo. É o caso do chavismo, na Venezuela (e de seus discípulos em Bolívia, Equador, Nicarágua), e do kirchnerismo, na Argentina.
Ao revalorizar a atuação da Igreja junto aos pobres, o Papa — ainda que tenha em mente mais a atuação pastoral e espiritual — torna-se uma preocupação para esses governos. As multidões que seguiram o funeral de Chávez e os peronistas que batem bumbos por Cristina Kirchner são, em grande parte, formados por católicos. Na Venezuela e na Argentina, mais de 90% da população se dizem católicos.
Os argentinos conhecem a atuação do cardeal arcebispo Jorge Bergoglio, visitante frequente das “vilas miséria” (favelas) na periferia de Buenos Aires, para levar ajuda à população marginalizada. Conhece-a também o governo. Bergoglio tem sido um crítico contumaz dos descaminhos kirchneristas, e o ex-presidente Néstor Kirchner já o chamou de “líder da oposição”.
Cristina adota uma mise-en-scène de reaproximação com o Pontífice, mas a Casa Rosada não escondeu o desconforto com a decisão do conclave. E setores do kirchnerismo montaram campanha para denegrir o Pontífice devido à já desmentida ligação com a ditadura militar, protagonizada pelo jornalista Horacio Verbitsky, do “Página 12”, veículo sob influência da Casa Rosada.
A missão de Francisco apenas começa, e sua atuação deve ser posta na perspectiva correta de líder espiritual. Mas é impossível não fazer uma relação com o papel do Papa João Paulo II no desmonte do comunismo em sua Polônia natal, um capítulo no efeito dominó na Europa Oriental, a queda do Muro de Berlim e, em última análise, o fim da URSS.
Esta relação é feita por Roberto Guareschi, ex-diretor do “Clarín”, jornal perseguido por Cristina K., em artigo publicado no “Valor”. Lembra as desavenças entre Bergoglio e o então presidente argentino Néstor Kirchner, e afirma que a corrente kirchenista teme o Papa. Afinal, os dois trabalham com o mesmo público, os pobres. Os peronistas, manipulando-os. Práticas demagógicas e autoritárias do populismo serão acompanhadas de Roma por quem conhece o assunto.