O governismo e outras histórias

A segunda-feira trouxe bons augúrios à América Latina. Rafael Correa se reelegeu, Chavez voltou pra casa, e Yoni Sanchez pôde sair de Cuba e viajar o mundo.

No Brasil, os reservatórios continuam enchendo: os do Sudeste/Centro-Oeste atingiram 44% de volume útil no dia 17 de fevereiro, contra 34% no dia 25 de janeiro; os da Região Norte chegaram a 68%.

A situação energética brasileira caminha a passos largos para um cenário de segurança e estabilidade nos próximos anos. Não apenas novas hidrelétricas devem entrar em ação este ano; há termoelétricas a gás sendo construídas para reduzir a dependência do regime de chuvas, muito irregular no Brasil; e temos alguns grandes parques eólicos já prontos cujos sistemas devem ser integrados à rede nacional dentro de alguns meses. Falta investir mais em energia solar.

O repique inflacionário de janeiro foi causado por questões sazonais. Nos EUA, as estatísticas de inflação vem sempre acompanhadas com um índice sem a presença de alimentos, para que a volatilidade das safras e seus problemas temporários não distorçam a tendência geral. Deveríamos fazer isso por aqui também.

Se a inflação é de apenas um ou outro alimento, pode-se sempre substituí-lo por outro. E o aumento no preço do cigarro pode ser neutralizado através da redução de seu consumo. O custo com habitação, energia elétrica e comunicação, estes sim difíceis de burlar, caíram em janeiro.

 

Sobre a blogueira Yoani Sanchez, o simples fato dela existir e escrever livremente, falando cobras e lagartos de Cuba, tuitando de hora em hora, em casa, na rua e no aeroporto, e ter finalmente a liberdade de sair de seu país e visitar o Brasil, onde se dedicará à sua profissão, que é falar mal de Cuba, para mim é o melhor elogio que se pode fazer à pátria de Fidel. Cuba tem mil problemas, mas o Brasil também tem, os EUA idem. Então cada um se preocupe com seu jardim e deixe o outro em paz.

Correa reelegeu-se à revelia da pesada campanha oposicionista da imprensa de seu país, e prometeu encetar uma profunda reforma da mídia equatoriana, ajustando-a novos tempos. As mídias corporativas do continente, até hoje financiadas com propaganda de agências norte-americanas, são o último resquício, na política, das ditaduras coloniais. Todas são empresas que floresceram e consolidaram-se a custa de subsídios e favores de regimes antidemocráticos. É uma dessas ironias grotescas da história que esses grupos agora se arvorem paladinos da democracia, e que venham se tornando mais e mais agressivos na proporção que os regimes políticos latino-americanos se tornam mais democráticos, mais transparentes e com mais participação popular.

 

 

Longe de mim, todavia, imaginar que a situação, seja no Brasil, seja em nossos vizinhos, é um mar de rosas.  Citaria inclusive o início de um poema do Spleen de Baudelaire, para falar de nossas dificuldades:

Essa vida é um hospital onde cada doente é tomado pelo desejo de mudar de leito. Aquele ali quer sofrer diante da cozinha, aquele lá acredita que seria melhor ficar ao lado da janela.

Aliás, talvez esse poema nem nos sirva, pois o desejo de nossos doentes nem é tanto mudar de leito, e sim encontrar um leito. Tem umas coisas que realmente dão nos nervos, por mais que a gente tente se manter otimista.

Marquise de hospital recém-inaugurado desaba em Fortaleza

 

Taí uma coisa que não consigo entender. Acontece em toda parte. A prefeitura recapeia uma rua, fica tudo lindo e duas semanas depois, a mesma está cheia de buracos novamente. As leis que governam a política de serviços e obras para o poder público deveriam focar na qualidade e durabilidade.

*

Há tempos ando pensando nessa história de governismo e não-governismo. Aí também temos outra curiosa ironia da nossa história. Durante décadas de ditadura, jornalistas eram brutalizados porque discordavam de um governo ditatorial, corrupto e truculento. A nossa grande mídia, nessa época, era caninamente governista.

E agora, quando temos um governo democrático, bem avaliado pela população e com uma excelente imagem internacional, a nossa mídia, através de seus áulicos, de repente começa a professar uma filosofia segundo a qual jornalismo independente tem de ser “oposição ao governo”, e fazendo todo o tipo de ataque àqueles que não seguem esta orientação.  Pior: depois de ganharem bilhões de governos, através de financiamentos, empréstimos, subsídios e favores, o que lhes permitiu alcançarem uma relativa autonomia (complementada por agências de publicidade norte-americanas), esses grupos agoram procuram, de todas as formas, criminalizar o mero debate sobre uma divisão mais equânime da publicidade estatal, e fazem campanhas para estrangular financeiramente as novas mídias antes mesmo que estas recebam alguma coisa.

Não é apenas a mídia, porém, que ataca “o governismo”. Ainda é muito forte, entre nós, essa cultura ibérica, aristocrática, que vê a política apenas como um feixe de teorias individuais, sem compromisso com um processo concreto de transformação social. A América Latina sofreu muito tempo com esse tipo de idealismo burguês, travestido de esquerda, que sempre se posicionou contra os governos progressistas da região.

No Brasil, esse iberismo egoísta, esse domquixotismo sem o amor real aos pobres e à justiça, produziu o monstro udenista, essa causa comum, fácil, que atravessa todas as ideologias. Trata-se, invariavelmente, de uma postura hipócrita, de um lado, e um louvor à estupidez, de outro. Hipócrita porque acaba sempre por beneficiar, direta ou indiretamente, o campo mais sujo, em termos de ética; estupidez porque sataniza a contradição, ou seja, mata a própria vida da política, a característica que lhe dá nobreza e concretude, arrancando-a do universo fantasmagórico do simples desejo.

O blogueiro Esmael Moraes, do Paraná, tem razão. A tentativa de derrubar Renan através de assinaturas coletadas em redes sociais inscreve-se na velha tradição golpista. É a âncora democrática de todo o golpe: cumpre ter algum respaldo popular, para justificar abusos. No caso do Brasil, esses abusos acontecem via pressão midiática sobre setores do Ministério Público e do Judiciário, assim como antes pressionavam os militares.

O estamento tradicionalmente golpista, segundo Raymondo Foro, é o alto funcionalismo público, não a classe política.

Renan pode ser o diabo, mas foi eleito senador pelo povo de Alagoas, e escolhido presidente do Senado por seus pares, em processos legitimamente democráticos. Por respeito à Constituição e à democracia, só pode ser apeado de seus cargos através dos mesmos processos.

Não por outra razão, os tribunos romanos (uma grande conquista da plebe após séculos de luta política) eram “sagrados”, ou seja, nenhum juiz, senador, cônsul ou ricaço podiam lhe inflingir qualquer violência, física ou jurídica, e só podiam ser derrubados por outros tribunos.  Essa é a origem e o espírito da lei que dá imunidade à classe política.

Os signatários dessas petições anti-corrupção integram os mesmos estratos sociais que foram às ruas, em 64, pedir a cabeça de João Goulart. O que devemos fazer é buscar ampliar a educação política do povo, para que ele vote baseado em informações qualificadas. Para isso, é importante uma imprensa plural. Para isso urge regulamentar a mídia brasileira.

*

Nos Tópicos de Aristóteles, descubro um texto útil para quem hesita na preferência entre dois campos políticos, em função de acreditar que se parecem em demasia:

Sempre que duas coisas se assemelhem muito entre si e não podemos ver nenhuma superioridade delas sobre a outra, devemos examiná-las sob o ponto de vista de suas consequências. Porquanto a que tem como consequência o bem maior é a mais desejável. (Tópicos III, parte 2)

 

O raciocínio do Mestre é especialmente importante na atual realidade política brasileira, porque as mesmas condicionantes, os mesmos obstáculos, os mesmos aparelhos, as mesmas instituições, que se põem igualmente no caminho de dois governos diferentes, acabam por lhes conferir uma falsa semelhança, levando eleitores a rejeitarem ambas. A filosofia nos ensina que é preciso olhar, sobretudo, para as consequências. Após tantos anos de governos X e Y, em qual deles se logrou melhor superar a pobreza? E assim vai.

Tal fórmula é importante porque em política não fazemos escolhas absolutas. Não escolhemos o governo dos nossos sonhos, que irá satisfazer todas as nossas expectativas, e sim o que, se eleito, produzirá – na comparação com as outras opções – efeitos mais favoráveis à sociedade. Um campo político reúne um conjunto enorme de interesses, muitos deles contraditórios. Devemos escolher, dentre as contradições à nossa disposição, qual delas acreditamos ser a mais favorável ao interesse nacional.

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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