É tempo de lágrimas e revolta no sul. A horrível morte de 231 jovens num incêndio em Santa Maria nos obriga a continuar o esforço, coletivo, de parafusar o Brasil não apenas ao humanismo que galvaniza as políticas públicas de assistência social, mas também a um racionalismo implacável, sobretudo quando se trata de oferecer segurança à integridade física das pessoas.
Ambos, humanismo e racionalismo, são necessários para a construção de um país. E dependem um do outro para se tornarem virtudes políticas. O humanismo sem amparo numa razão objetiva degenera em sentimentalismo derrotista, ineficiente, piegas, que apenas perpetua o sofrimento humano. O racionalismo sem humanismo se converte num monstro frio, objetivo e… nazista.
Uma boate nazista, por exemplo, jamais cometeria erros tragicamente idiotas como permitir um show com fogos numa boate fechada, teria saídas de emergência com portas antipânico e planos especiais para incêndio. Os nazistas, quando queriam carbonizar gente, o faziam de maneira deliberada – e rápida.
Daí chegamos, curiosamente, a um ponto em comum entre uma sociedade humanista, mas sem rigor, e uma racionalista, mas sem humanismo. Um montão de cinzas humanas.
Para derrubar o nazismo, a humanidade teve que sacrificar seis ou sete milhões de pessoas, vezes dez. A falta de rigor no Brasil, por sua vez, já produziu um bocado de prejuízo humano, e talvez seja hoje o principal problema nacional. O governo Dilma é humanista, disso poucos têm dúvida. E a presidenta é conhecida por ser uma pessoa extremamente rigorosa. Possivelmente, esta sua característica tenha sido a razão pela qual seu mentor, Lula, a escolheu: por entender que ela possuía a virtude que mais faltava ao Brasil.
E, no entanto, resiste o Estado brasileiro, e o próprio governo, à influência supostamente positiva da presidenta. Será ela menos rigorosa do que parecia? Ou será a resistência maior do que se esperava? As obras demoram a sair do papel, e a burocracia se agiganta, cada vez mais lerda, chantagista, corrupta.
A popularidade da presidenta, crescente, revela que a maioria segue a segunda hipótese: é o país que resiste em se modernizar. Dilma faz sua parte: reduziu juros, spread, impostos, conta de luz, ampliou o crédito, mandou fazer hidrelétricas, iniciou grandes obras de infra-estrutura.
O país agora precisa fazer a sua. Os indivíduos precisam ser mais responsáveis. Os governos, federal, estadual, municipal, têm de monitorar tudo, mas não podem entrar, em todas as boates, todas as noites, para checar se um gerente retardado autorizou a realização de um show de fogos de artifício dentro de um ambiente fechado! Ou, para lembrar uma outra tragédia, não podem monitorar cada obra em cada edifício, para ver se a tal empresa está quebrando colunas estruturais para deixar o ambiente mais “arejado”.
E já que mencionamos responsabilidade, vamos falar de política, e entrar nos temas rotineiros blog.
O Estadão anda meio destemperado nos últimos dias, como que passando por uma síndrome de abstinência de Rivotril. Ontem, o editorial “O Espírito Público do PT” passou recibo de que a ficha engolida pelo jornal está dificil de passar pela goela: a oposição está minguando. E olha que ontem o jornal, aparentemente, tinha um grande trunfo nas mãos. Hoje também. Mais uma vez, a Procuradoria Geral da República repassou ao jornal milhares de gravações telefônicas de uma investigação que corria em segredo de justiça. São ligações de Rose Noronha, Paulo Vieira e outros bambas. Só que a montanha, aparentemente, pariu uma pulga. A única coisa que encontraram para incriminar Lula, por exemplo, foi uma conversinha absolutamente anódina, pueril mesmo, entre Rose e Paulo Vieira.
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O udenismo tem um irmãozinho muito legal entre intelectuais, jornalistas e acadêmicos da esquerda. É o bom mocismo. Sendo agora a moda falar mal, de preferência chorosamente, de Henrique Alves e Renan Calheiros, encontramos as teses mais esdrúxulas. Neste fim de semana, foi a vez de André Singer. Em geral, o bom mocismo é a maneira encontrada por intelectuais de esquerda para ganharem acesso à grande mídia. Se for apenas isso, eu compreendo e perdôo. Provavelmente eu faria igual, não tivesse enveredado pelo caminho sem volta da blogagem suja. Só não perdôo se acreditarem mesmo em algumas coisas que escrevem.
Em seu artigo, publicado na Folha há alguns dias, André Singer cita Raymondo Faoro, um autor que virou moda citar quando se quer falar mal da política e dos políticos brasileiros.
Abaixo, eu comento o texto de Singer. O dele vai em negrito, o meu segue em fonte normal.
Os donos do poder
André Singer
“O problema do político era o poder, só o poder, (…) sem programas para atrapalhar ou ideologias desorientadoras. O agente ideal para esta ação será o realista frio, astuto mais que culto, ondulante nos termos, sagaz na apreciação dos homens, aliciador de lealdades e pontual na entrega de favores.” As palavras de Raymundo Faoro no livro cujo título encima esta coluna descrevem o que chamou de “patronato político brasileiro”.
A abertura cumpre o objetivo, central em todo bom-mocista midiático, de falar mal da política. Só isso já garante uma boa impressão junto aos “donos da mídia”. Ora, as complexidades, ora sutis, ora brutais, do patronato político brasileiro certamente não são descritas por esta frase. Não é a tôa que o livro de Raymondo Faoro, que tenho aqui a meu lado, e do qual reli dezenas de páginas antes de escrever essa análise, tem 913 páginas!
A provável ascensão de Henrique Eduardo Alves e Renan Calheiros às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente, atesta a plasticidade desse estamento, o qual, volvido meio século da publicação do clássico estudo, foi capaz de sempre adaptar-se à modernização (precária) do Brasil sem perder a essência, a saber, o controle do poder de base local.
Que estamento? O patronato político? O poder local? O poder legislativo central? Singer comete uma daquelas proezas, que eu costumo apenas ver em editoriais do Globo, de incorrer em dezenas de erros em apenas uma frase. Pulemos para os capítulos do livro que fala de períodos mais recentes, pós-Vargas. O “estamento” mais temido por Faoro nesse período não é o dos políticos, muito menos os de base local, e sim “a elite burocrática, a intelligentsia que absorve as técnicas do capitalismo industrial, preocupada com a eficiência da modernização econômica e social, [que] tenta se autonomizar, desdenhando dos políticos, para ela simples agitadores, ignorantes, incapazes e corruptos.”
Observe que Faoro admite as qualidades intrínsecas desse estamento, mas lamenta suas tendências aristocráticas e, como veremos alguns anos depois, golpistas. O estamento burocrático, que inclui os militares, será o grande fiador do golpe de 64, que terá como objetivo, justamente, impor a “eficiência da modernização econômica e social” e limpar o país de políticos “agitadores, ignorantes, incapazes e corruptos”.
Ou seja, Singer, ao citar o estamento de Faoro, acabou por citar a si mesmo como seu integrante, ao repetir o preconceito que a elite burocrática desenvolve contra o homem político a partir do momento em que este – com a universalização do sufrágio – se revela um corpo estranho, populista, no ambiente concursado, higiênico e culto do alto funcionalismo público.
Quanto ao “poder local”, a crítica de Faoro não é contra luta natural dos representantes políticos e suas legendas para ampliarem sua influência dentro do seu estado. Em qualquer federação, o poder nasce dentro de uma unidade federativa, portanto a luta política pelo poder no estado é um processo democrático natural e saudável. O repúdio de Faoro é contra o processo viciado que vigia durante o Império, a Regência e nas primeiras décadas da República, onde o controle das mesas eleitorais era a única condição de se vencer um pleito. “Feita a mesa, está feita a eleição, dizia-se há um século – fazer a mesa significa compô-la, fabricá-la e ocupá-la. Terminada a obra de violência, começava a fraude, com o voto manipulado, com as incompatibilidades de ocasião, com a contagem arbitrária. (…) O órgão apurador, no ciclo final, tal a balbúrdia dos resultados, faz a sua própria eleição, remotamente ligada à vontade do eleitorado.”
A questão visceral, sobretudo, para Faoro, era a falta de “independência econômica do eleitor”, e o caso mais grave estava no Nordeste por ser uma região em franca e acelerada decadência econômica.
Alves e Calheiros podem ser dois sacripantas, mas a sua força política tem sido construída, nos últimos 20 anos, sobre um processo eleitoral legítimo e transparente, bem distante da bagunça que vigorava nos tempos descritos por Faoro. E nos últimos 10 anos, o nordeste tem sido a região que cresce de forma mais acelerada no país, com aumento da renda per capita, surgimento de novas indústrias e recuperação de suas lavouras. O Globo publicou matérias, por exemplo, acusando Renan Calheiros de usar sua influência para ampliar o alcance do programa Minha Casa Minha Vida em seu estado. Bem, o objetivo do programa Minha Casa Minha Vida é justamente estimular que a classe política de determinado estado e município possa participar também da implementação do mesmo, bastando se cadastrar e fazer alguma gestão junto às agências locais da Caixa. O Bolsa Família segue a mesma lógica. Que peguem o Renan por causa das notas frias sobre seus bois, mas em se tratando de seu lobby para ampliar o Minha Casa Minha Vida em Alagoas, isso é digno de elogio, não de denúncia.
Uma reportagem recente do Globo vai na mesma linha, da denúncia às avessas. Repare no início da matéria:
Murici, em Alagoas, compra combustível num único posto
Prefeitura é administrada há 30 anos por parentes de Renan CalheirosODILON RIOS
MACEIÓ — Enquanto a maioria das prefeituras brasileiras está em crise, a cidade de Murici, em Alagoas, administrada há 30 anos por parentes do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), vive tempos de prosperidade financeira. Tanto que o município assinou dois contratos, sem licitação e em caráter emergencial, no valor de quase R$ 1 milhão, para comprar combustível para todas as secretarias.
O crime denunciado pela matéria é que a prefeitura compra combustível num posto, sem licitação. Não acredito que Murici tenha dezenas de postos como opção alternativa… O que o Globo não informou, porém, é que os principais compradores foram as secretarias de educação e saúde, ou seja, para abastecer veículos de transporte escolar, médico e ambulâncias… E nem comento a abertura, provavelmente uma ironia de mau gosto, que trata uma suposta boa situação financeira da prefeitura como “suspeita”.
Continuemos a análise do texto de Singer:
O PMDB é, hoje, a principal sigla do patronato por ser a mais velha em funcionamento. Dispõe de capilaridade inigualável. Elegeu o maior número de prefeitos em outubro passado (1.027), 750 dos quais em municípios com até 15 mil eleitores. Os espalhados diretórios peemedebistas não são só fruto da expansão que o partido sofreu a partir de 1974. Antes da abertura, parcela da estrutura montada por antigas agremiações já o engrossava.
Agora Singer fala no tamanho do PMDB como se estivesse descrevendo prontuário de um crime. Ora, o PMDB tem a força que tem porque, no fim da ditadura, havia apenas dois partidos, a Arena, da situação, e o PMDB, de oposição. O brasileiro não tinha muita escolha. Nos últimos anos, com a emergência de outras legendas, o PMDB vem declinando. É natural, porém, que o partido se esforce para continuar grande, e provavelmente se beneficiou do declínio do DEM em algumas regiões.
Tome-se o caso exemplar de Aluísio Alves, patriarca do clã que deverá ocupar agora o segundo posto na linha sucessória da Presidência da República. Eleito constituinte pelo Rio Grande do Norte em 1945, Alves ficou na UDN até que desavenças regionais o levaram ao arquirrival PSD para ganhar a eleição de governador em 1960. Integrava, portanto, a base aliada a Jango, mas, consumado o golpe de 1964, apoiou os militares, indo para a Arena. Outra vez por conflitos estaduais, foi cassado em 1969, “sob alegação de corrupção”, segundo o CPDOC. Transferiu a sua influência para o MDB, por meio do qual fez do filho, Henrique, membro do legislativo federal em 1970, o que se repete desde então.
Bem, não vou falar do pai do Alves. Só comento a última frase de Singer. Quando ele fala “o que se repete desde então”, ele omite um detalhe singelo: Alves tem participado, desde então, de eleições livres. É assim que mantém seu poder.
Se, além disso, considerarmos que o PSD e a UDN foram formados de estruturas coronelistas que remontam ao império, a história do peemedebismo se perde na noite dos tempos, da qual emerge para assombrar uma sociedade que teima em esquecer de onde veio.
Agora Singer foi longe! Em primeiro lugar, PSD e UDN foram formados não das estruturas coronelistas que vigoravam nos tempos do império, mas sim de seus destroços. Ambos foram criados em 1945, após o primeiro governo Vargas varrer os coronéis e inaugurar um outro tempo, com a emergência de outras forças e outras injustiças. O finalzinho dramático e clichê, portanto, perde o sentido.
Dois fatores garantem a sobrevivência dos mecanismos arcaicos de patronagem. O primeiro é a persistência da pobreza. A penúria material da população gera o solo de dependência sobre o qual florescem diferentes modalidades de mandonismo. O segundo é a cultura que educa os quadros do estamento. Como os descreveu Faoro, um misto de realismo e sagacidade lhes permite prever em que direção soprará o vento. Depois, é só corrigir a posição das velas.
Eu tenho a impressão que vai aí um tanto de preconceito contra o nordeste. O eleitor paulista, que elege Maluf, Alckmin, Roberto Freire, é um cidadão soberano. O nordestino é uma vítima da patronagem. Ora, ambos votam mal às vezes, mas acho um pouco desrespeitoso falar em patronagem, ainda mais que Singer logo em seguida explica que a razão desse voto é a pobreza. Ou seja, o cidadão vota em Renan Calheiros e Alves porque é pobre? Segundo eu entendi pela “denúncia” do Globo, o pobre vota em Renan porque ele ajuda a levar o Minha Casa Minha Vida para o estado, e tem sido um fiel apoiador das políticas públicas de Lula para o nordeste. O pobre, portanto, vota em Lula e em Renan Calheiros, porque é pobre, sim, mas porque vê sua vida melhorar. Independente se Renan Calheiro tem amante ou não.
Singer termina com uma derradeira denúncia aos quadros do “estamento” (usando equivocadamente o conceito de Faoro, mas tudo bem), dizendo que ele tem “realismo” e “sagacidade”. Não vejo que utilidade teria um político que fosse irrealista e burro…
Por fim, lembremos que Faoro publicou seu clássico em 1958, sem tempo de ver emergir no Brasil, portanto, os grandes conglomerados de mídia. Gostaria de saber a opinião do nosso grande pensador político sobre a fortuna de US$ 21 bilhões da família Marinho, e se isto não a torna, junto com suas TVs, rádios, jornais e demais empresas, num estamento político à parte, intocável, arrogante, temível. Sobretudo se lembrarmos da recente denúncia da ONG Repórteres Sem Fronteiras, sobre os 30 Berlusconis do Brasil.
Aliás, no relatório da ONG, consta algumas recomendações para civilizar o ambiente midiático no Brasil. A primeira delas é:
Tradução: Uma completa revisão da atual legislação concernente à mídia, que não é mais eficiente. Uma nova legislação deveria incluir cláusulas estritas sobre a propriedade de veículos de comunicação e distribuição da publicidade oficial. Uma lei está sendo discutida no Rio Grande do Sul, que visa investir ao menos 10% de publicidade em veículos pequenos e comunitários. Essa ideia deveria ser mais desenvolvida.
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Eu gostaria também de filosofar um pouco sobre os seguintes textos, recentes:
- Os impasses do Lulismo, de Vladimir Safatle;
- Entrevista com Olívio Dutra, para o Brasil de Fato.
Ando sentindo falta de um debate sobre Política e Ideologia, com iniciais maiúsculas. Mas deixemos isso para segunda-feira que vem, quando eu escrever outro post de conteúdo livre.
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Adir Tavares (@Adir00)
29/01/2013 - 08h03
Singer e a síndrome do bom moço http://t.co/YK9kIVt5
@marconicbr
28/01/2013 - 10h40
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@marinildac
28/01/2013 - 10h02
“@anisionogueira: EXCELENTE ARTIGO! REPASSEM! http://t.co/L6gP2ymC” / Rapaz, excelente mesmo, um espetáculo!
@helshmanlacerda
28/01/2013 - 09h33
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anisio luiz nogueira (@anisionogueira)
28/01/2013 - 09h08
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migueldorosario (@migueldorosario)
28/01/2013 - 08h42
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