DE SÃO PAULO
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, concedeu entrevista à Folha na qual fala sobre o desfecho do processo do mensalão no Supremo, caso denunciado em 2006 e que, seis anos depois, foi julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), resultando na condenação de 25 réus.
Fala também sobre assuntos como o mensalão mineiro, da presidente Dilma Rousseff e das comparações com o apresentador Jô Soares.
Esquema do mensalão é muito mais amplo, diz procurador-geral
Para Gurgel, Câmara não pode ser usada como ‘esconderijo’
Folha – Foram 25 condenados ao fim do julgamento do mensalão, um placar favorável ao Ministério Público Federal, que pedia a punição desses agentes. Qual o balanço que o senhor faz depois de quatro meses de julgamento e sete anos de processo?
Roberto Gurgel – O balanço é muito positivo. De um lado, a acusação, naquilo que era mais importante, nos aspectos essenciais, ela foi acolhida quase que integralmente pelo Supremo Tribunal Federal. Havia uma grande preocupação e, eu diria, o grande desafio desse processo era provar a responsabilidade das pessoas que integravam o chamado núcleo político. Por que? Porque efetivamente essa prova é diferenciada. Não é a prova direta que você tem em relação a executores da conduta criminosa quando você tem a quadrilha. Aquelas pessoas que estão no topo da quadrilha elas tem sempre uma participação cuidadosa e, por isso mesmo, provas diretas são praticamente impossíveis. Daí considerar extremamente positivo demonstrar a responsabilidade penal dessas pessoas com o Supremo entendendo que toda prova que era possível produzir nessas circunstâncias foi efetivamente produzida e oferecida pelo Ministério Público. Isso eu acho um aspecto muito importante que deverá surtir efeitos muito além desse processo. Diversas posições e entendimentos que foram firmados pelo Supremo Tribunal Federal… Eles são importantes não apenas pelo que significaram em termos da responsabilidade penal dos réus da Ação Penal 470, mas porque fixam parâmetros que serão extremamente importantes na persecução penal como um todo no Brasil.
O senhor está falando sobre um divisor de águas no Brasil?
Olha, é um marco muito importante, talvez um divisor de águas, nessa história dessa persecução penal da tentativa de responsabilizar pessoas envolvidas em esquema de corrupção do país.
Dá para dizer que o senhor atuou nesse processo desde o início – como vice-procurador e procurador-geral. Desde o início o senhor tinha a noção do tamanho do esquema?
Em primeiro lugar, quando eclodiu o escândalo o procurador-geral era o Antonio Fernando [de Souza] que cuidou diretamente desse assunto com ajuda de alguns colegas. Naquele momento eu acompanhei o que estava ocorrendo, mas sem uma participação nos detalhes da acusação. Tínhamos então a percepção de que estávamos realmente diante de algo muito grande e, diria até, de algo muito maior do que aquilo que acabou sendo objeto da denúncia. Antonio Fernando fez uma opção, a meu ver corretíssima, de quando nos defrontamos em qualquer investigação com um esquema criminoso muito amplo você tem que optar, em determinado momento, não em parar a investigação, mas limitar essa investigação. A percepção indiscutível é que, quando a coisa é ampla demais, se você não impuser limites a essa investigação, você não vai chegar a lugar nenhum porque, na verdade, irá passar de um lugar a outro, e a outro, e a investigação não tem fim. E qual é o efeito disso? Ao final ninguém vai ser responsabilizado porque o Ministério Público fica impossibilitado até de oferecer uma denúncia. O Antonio Fernando, sem dúvida, percebeu que era algo muito grande, mas que era preciso limitar uma investigação para que se pudesse dar consequência a essa investigação. O que isso significou? Não tenho dúvida, e o relatório da CPI [dos Correios, que investigou o mensalão] dá bem uma ideia disso, de que os fatos que foram objetos da denúncia representam apenas uma parte desse esquema. Haveria muito mais, esse esquema seria ainda muito mais amplo, do que aquilo que constou na denúncia. Mas o que constou da denúncia foi o que foi possível provar, com elementos razoáveis, que poderiam dar base a uma denúncia. De nada adianta você ter fatos e fatos, dezenas deles, em relação aos quais você não consegue estabelecer uma prova minimamente consistente. A opção feita foi a seguinte: aquilo que em um determinado momento, que coincidia com o final dos trabalhos na CPI, tinha sido possível provar, ou pelo menos reunir indícios consistentes de prova, foi selecionado para dar base à denúncia.
Dá para dizer que o que foi julgado foi a ponta de um iceberg?
É. Eu diria que, sem duvida alguma, que aquilo que foi julgado pelo Supremo representa apenas uma parte de algo que era muito maior. Não tenho ideia -nós não temos elemento para dizer se isso representava 1/3, ¼, não dá para quantificar- mas temos a percepção de que haveria muito mais que em relação ao que não foi possível provar. O Ministério Público faz muito um juízo de viabilidade. Ele verifica, em determinado momento, a prova que ele conseguiu reunir. As vezes, você diz: bom, reuni essa prova até aqui, mas é viável robustecer essa prova, acrescentar a essa prova outros elementos. Outras vezes você chega à conclusão oposta: o que eu tenho é apenas isso, isso não é suficiente para dar base para fundamentar uma denúncia, mas prosseguir nessa investigação também não vai me acrescentar nada pelas dificuldades de coleta de provas nesse tipo de crime.
O senhor estava falando do futuro, da importância do julgamento. Que jurisprudências o senhor acha que os juízes de primeira instancia terão que seguir a partir do julgamento?
Em primeiro lugar os juízes terão um grande parâmetro que o Supremo fixou, que crimes desse tipo não podem ser julgados à luz dos mesmos parâmetros que são utilizados na persecução penal de crimes extremamente simples, crimes que estão na faixa oposta dos crimes de colarinho branco. Os furtos e roubos são julgados a partir de determinados parâmetros. Trazer esses parâmetros para os crimes de colarinho branco é assegurar a impunidade, porque o tipo de prova será sempre diferente. O Supremo assentou que é preciso prova, e robusta, para qualquer condenação. Mas, digamos, o tipo de prova não é o mesmo daqueles de crimes extremamente simples, diria de uma marginalidade muito simples. Disso decorre uma série de situações. Primeiro, a tão discutida tese da teoria do domínio do fato. Não é uma grande novidade. O Supremo deu um grande destaque, mas isso já era aplicado no nosso Judiciário, na jurisprudência brasileira. Dar esse realce a teoria do domínio do fato é algo que terá muita relevância quando se falar na persecução penal desse tipo de crime nas diversas instâncias, seja no primeiro grau ou em outras instâncias.
Não há uma confusão quando se fala da teoria do domínio do fato com a responsabilidade objetiva?
Total. Na verdade, qual é a tese básica e essencial da defesa em qualquer situação em que se lide com esse tipo de crime, os chamados colarinhos brancos? É de que deveríamos exigir o mesmo tipo de prova que nós exigimos em relação ao punguista que bateu a carteira de alguém. Que tenha a prova direta, a testemunha que viu ele enfiando a mão no bolso, bolsa, essa coisa toda. A defesa tem a ideia de que esse tipo crime do colarinho branco tem que ser examinado à luz daquele mesmo tipo de prova, o que é um grande absurdo, evidentemente. Qual é o argumento seguinte da defesa? Se você não consegue apresentar, em relação a esse caso do colarinho branco, aquela mesma prova direta de quem viu o fato, a gravação em vídeo que você apresenta em relação a esse criminoso comum, então você esta incidindo na responsabilização penal objetiva. Responsabilidade penal objetiva é algo inteiramente diverso: seria pretender que a responsabilidade penal objetiva você pretender que a responsabilidade penal de alguém decorra meramente do fato dele ser, por exemplo, ministro de Estado, secretário de prefeitura etc. Não se reúne absolutamente nenhum elemento de prova em relação a aquela pessoa. Mas como ele era ministro de Estado e esses fatos ocorreram na sua pasta ele necessariamente tem que ser responsabilizado. Isso é responsabilidade penal objetiva. É algo que o nosso direito não aceita, aliás nenhum direito aceita. A teoria do domínio do fato, por outro lado, ela é oposto disso: ela não prescinde da prova. Em relação ao José Dirceu o Ministério Público demonstrou a participação dele em reuniões, ou episódios como aquele que estavam lá [o ex-tesoureiro do PT] Delúbio Soares, [o ex-secretário geral do PT] Sílvio Pereira e fazia-se um determinado acerto com algum partido e dizia-se: ‘Mas quem tem que bater o martelo é o José Dirceu’. Aí, ou ele dava uma entrada rápida na sala ou dava um telefonema para ele e ele então dizia: ‘Está OK, pode fechar o acordo’. Então veja que, na verdade, nós reunimos toda uma série de elementos de prova que apontavam para a participação efetiva dele. Agora, claro, não é aquela prova direta. Em nenhum momento nós apresentamos, nem poderíamos fazer, ele passando recibo sobre uma determinada quantia ou ter uma ordem escrita dele para que tal pagamento fosse feito ao partido ‘X’ com a finalidade de angariar apoio do governo. Nós apresentamos uma prova que evidenciava que ele estava, sim, no topo dessa organização criminosa. Aí vem a teoria do domínio do fato para dizer que, como essas provas indicam que ele se encontrava numa posição de liderança nesse sistema criminoso então é possível, sim, responsabilizá-lo a despeito da inexistência da prova direta. Prova havia bastante desse envolvimento dele. Mas não é aquela prova direta que só existe em relação aos executores do crime e não aquela que lidera a organização criminosa.
Ele era o homem forte do presidente Lula, mais poderoso, mas todo mundo se pergunta até hoje como é que o presidente Lula poderia não saber. Uma das coisas que não se conseguiu provar é a participação do presidente Lula no esquema. Mas isso nunca ficou na cabeça de vocês durante a investigação?
Esse foi um juízo feito na época do Antônio Fernando, do qual eu concordo, que no momento em que foi feito a denuncia os elementos de prova não apontavam para a participação do presidente Lula. Então eu não tenho dúvida que ele seria cobrado por isso, por não incluir o presidente Lula. Mas ele efetivamente não viu –e eu concordo com a conclusão dele- o mínimo de elementos consistentes apontando para a responsabilidade do presidente Lula. Todos nós aqui tínhamos a percepção de que essa era uma denúncia extremamente difícil. Responsabilizar pessoas que naquele momento, e até hoje, são extremamente poderosas é sempre muito difícil. Por isso o que se quis desde o início foi oferecer uma denúncia fundamentada em provas. O Ministério público não quis empreender uma aventura porque sabia que, mesmo solidamente amparada em provas, seria uma denuncia de viabilidade difícil. Era uma das primeiras vezes que se responsabilizava [não só] uma pessoa, mas todo um grupo que era o grupo que dominava o partido do governo. Mas naquele momento não houve elementos suficientes para isso. Para oferecer uma denúncia contra aquelas pessoas já se teve que reunir [provas] com muita dificuldade, pelas características do crime, consistentemente. Em relação ao presidente precisaria ter a prova mais que robusta porque seria uma irresponsabilidade denunciar um presidente da República.
O que já era difícil com o ministro José Dirceu…
Muito mais difícil com o presidente da República.
E o que muda com esse depoimento do Marcos Valério até agora?
Essa procura que, salvo engano, aconteceu em setembro, foi o seguinte. O advogado dele fez um contato com o gabinete do ministro Joaquim Barbosa e também com o gabinete da presidência do STF. No sentido de que ele gostaria de ser recebido porque teria novas informações e gostaria de prestar um novo depoimento. Então o ministro Carlos Ayres Brito, na condição de presidente do Supremo, me procurou para relatar isso dizendo que conversara com o ministro Joaquim e que não seria muito adequado que o relator o recebesse no Supremo. Mas que parecia mais adequado que o procurador-geral o recebesse. Então disse que me disporia a recebê-lo e isso foi transmitido ao advogado dele. Então vieram aqui o advogado [Marcelo Leonardo] e o próprio Marcos Valério nesta sala. Chegaram aqui e duas coisas eram evidentes na minha visão: o que se pretendia naquele momento que, segundo ele, influiria decisivamente nos rumos da Ação Penal 470. E em razão desse depoimento, ele esperava receber benefícios por essa colaboração, como a redução de penas. O que eu percebi claramente era que se nós fossemos admitir qualquer tipo de elemento de prova adicional em relação à Ação Penal 470 teriamos que anular aquele início de julgamento e reabrir a instrução criminal. Esquecer aquele pedaço que já havia acontecido para que nós pudéssemos oferecer essas novas provas resultantes desse depoimento dele e, claro, com a defesa se manifestando sobre isso. Aquilo significava, em português claríssimo, melar o julgamento. Eles queriam melar o julgamento. Naquele momento eu vi essa tentativa não como dele, mas como uma tentativa que favoreceria todo mundo, todos os denunciados seriam favorecidos por um adiamento do julgamento, sei lá para quando. Então, a primeira coisa que disse ele foi que nada, absolutamente nada, nesse depoimento que ele se dispunha a prestar, seria utilizado na Ação Penal 470. E, em consequência, disse também a ele que nenhum beneficio ele teria em razão do depoimento. Essa [foi] a posição da Procuradoria, que não excluiria eventualmente o relator ou o tribunal achar que ele vinha demonstrando boa vontade. Entendia que ele tinha vindo prestar esse depoimento pensando nisso, nesse benefício. Na verdade, acho que ele pensava mais em embolar o julgamento. Então disse que ele ficasse inteiramente à vontade para desistir da ideia de prestar o depoimento. O advogado disse que eles estavam muito frustrados, já que imaginavam que pudesse ser usado na [Ação Penal] 470 e ter benefícios em razão disso.
Eu inclusive deixei os dois sozinhos e me retirei para que eles conversassem e depois de um tempo o doutor Marcelo [Leonardo, advogado de Valério] me chamou e eu voltei. Ele disse: ‘Gostaria que o Marcos Valério, na sua frente, dissesse, nessas condições que o senhor expôs, se ele persiste com o depoimento’. Ele então disse: ‘Persisto’. Nessas condições eu determinei que ele fosse ouvido por uma subprocuradora-geral e por uma procuradora regional da República desde o início nessa ação. O depoimento dele é hoje, em grande parte, de conhecimento público porque não é a primeira vez que ele vem aqui, pede o sigilo absoluto, que foi garantido pelo Ministério Público, absolutamente ninguém teve acesso a esse depoimento, mas eu acho que grande parte dele já foi divulgado. Ele dizia que se esse depoimento fosse divulgado ele não teria mais 24 horas de vida, tal a importância do que seria dito. Ele prestou um depoimento de duas horas e a primeira impressão das colegas que o ouviram é de que o depoimento trazia elementos novos, mas não tinha nada de bombástico. É um depoimento que não é longo, feito em duas horas, com aquela coisa que para e retoma. Ele, em primeiro lugar, robustece algumas teses do Ministério Público e em relação a todo esquema criminoso. Reforça a participação daquelas pessoas do núcleo politico nessas reuniões e há uma referência àqueles valores decorrentes de empréstimos que eram contraídos junto ao Banco Rural que eles teriam também a finalidade de pagar despesas do [ex-]presidente Lula. Em relação a isso ele menciona que haveria pagamentos feitos ao Freud Godoy [ex-assessor de Lula], que trabalhava na Presidência da República e tinha uma empresa de segurança. Em essência, ele não é novo em sua maior parte, mas traz novos elementos que eu diria que não são grandes. Algumas novas informações que, ao ver do Ministério Público, só evidenciam que a nossa acusação procedia mesmo. Eu disse a ele antes do depoimento: ‘A sua colaboração foi sempre muito desejada pelo Ministério Público, mas ela nunca se efetivou’. Houve um momento que ele apareceu aqui, quando Antônio Fernando era o procurador-geral, para também prestar um depoimento que também derrubaria a República. Prestou um depoimento absolutamente sem coisa e também pediu sigilo e saiu daqui e quase fez uma coletiva com a imprensa lá em baixo revelando tudo que havia dito. Nesse caso ele saiu daqui com uma das vias do depoimento.
Se ele tivesse dito isso lá no inicio daria para colocar o presidente Lula na denúncia?
Teria que aprofundar a investigação em relação a isso. Ele aponta apenas isso: que alguns dos empréstimos feitos teriam, além daquelas finalidades indicadas na denúncia, a finalidade de pagamento do que ele chama de, salvo engano, despesas pessoais do presidente da República.
Mas agora da para dizer que o presidente Lula é investigado?
Ele ainda não é investigado. Eu despachei no mesmo dia que, considerando o estágio em que se encontrava a Ação Penal 470, com o julgamento já iniciado, não é possível utilizar qualquer elemento porque estava encerrada a instrução criminal. E para evitar qualquer tipo de embaraço ao julgamento eu determinei que ficassem aqui sobrestados [suspensos] esse procedimento, que contém o depoimento, e que isso seria examinado tão logo concluído o julgamento. Agora vamos passar para essa fase do exame. Uma coisa que já posso adiantar que hoje o presidente Lula não detém prerrogativa de foro então eventual exame de sua participação já não caberá ao procurador-geral da República, mas a um procurador da República de primeira instância.
E isso já foi feito?
Ainda não, mas é o que provavelmente irá acontecer. Como eu disse não há quase nenhuma novidade, mas os fatos que estão ali não envolvem – a princípio, e é isso que tenho de concluir – com prerrogativa de foro. E não envolvendo tem que ir para o primeiro grau, que tem a atribuição para isso. Mas já digo: não são aqueles fatos grandiosos, há muito pouco de novo.
O senhor acha que houve um movimento pensado dele em fazer um vazamento e tumultuar o julgamento?
Pela parte do Ministério Público garanto em termos absolutos que ninguém teve acesso ao depoimento. Mas o principal objetivo frustrou-se diante da posição do Ministério Público de não levar em conta esse depoimento para a Ação Penal 470. Esse era o grande objetivo. Teria que se jogar fora todo o julgamento. Era anulado. Significava inviabilizar por um prazo indeterminado -sem dúvida nenhum muito longo- a continuidade do julgamento.
Poderia ser uma chantagem ao presidente Lula?
Não. Claro que se valoriza sempre qualquer referência ao presidente Lula.
Qual o crédito que tem um depoimento dado após início do julgamento?
O depoimento quando vem a titulo de uma colaboração é sempre examinado com muita prudencia e cautela pelo Ministério Público. Nós sabemos que a colaboração pode, as vezes, se prestar a alguns desvios na apuração. Nós desejamos muito a colaboração dele, ele várias vezes acenou e não fez nada de concreto. Quando ele veio a primeira vez, e nós espremíamos o depoimento, não havia nada. O que se espera de um colaborador são fatos novos e provas novas e o Marcos Valério, com muita frequência, traz fatos que vocês da imprensa já publicaram. E ele coloca no depoimento como se fosse uma tremenda novidade. Ele é uma pessoa extremamente hábil, sabe se utilizar de todas essas tentativas. A conversa que tive com ele e o advogado foi totalmente gravada. E do depoimento consta que a colaboração dele, se fosse julgada consistente, poderia a vir beneficiá-lo em outros processos que se encontram na primeira instância.
Marcos Valério pediu alguma proteção para dentro da cadeia?
Não. Como eu disse, ele inicialmente apelou para que eu tudo fizesse para assegurar o sigilo do depoimento que ele ia prestar. Eu até imediatamente disse: ‘Olha, senhor Marcos Valério, da vez passada que o senhor prestou depoimento aqui, o senhor fez o mesmo pedido e ao descer aqui deu uma coletiva divulgando todos os fatos. Então, vazamento aqui não acontece do Ministério Público, acontece de sua parte’. Ele então disse que se o depoimento dele vazasse, ele não teria 24 horas de vida. Eu então disse que gostaria de saber se ele estava ameaçado e aí me dirigi ao advogado e perguntei o que ele gostaria de obter em termos de providências para assegurar a proteção ao Marcos Valério. E ai o advogado, com todas as letras disse: ‘Doutor Gurgel, por enquanto, não há necessidade de nada. Se essa situação se modificar, imediatamente comunicarei ao senhor’. E ai eu disse que a questão da segurança de Marcos Valério é absolutamente prioritária. O Ministério Público adotará todas as medidas necessárias junto ao Supremo, junto à Polícia Federal no sentido de garantir a segurança.
O senhor propôs a prisão para os condenados do mensalão e o presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, negou. Quando agora essa decisão será cumprida?
Eu acho que você toca num ponto que para mim é muito importante. Eu acho que o Supremo Tribunal Federal fez um esforço magnífico na condução desse processo. Desde o início. Para um processo dessa dimensão, com o número de réus, tivemos uma tramitação, considerando nossa tramitação processual, muito célere. Chegamos a um resultado, se não um divisor de águas, talvez seja um divisor, mas um marco histórico nessa persecução penal no Brasil, na repressão do crime de colarinho branco. Mas nós não acabamos. É preciso dar efetividade a esse julgamento. Para mim e para o Ministério Público, o que nós tivemos até agora é muito importante, é um marco histórico, mas não basta. É preciso que os juízos condenatórios proferidos pelo Supremo Tenham as devidas consequências. E isso representa a execução da decisão do Supremo nos seus mais variados aspectos. Na questão dos mandatos parlamentares, na questão dos mandados de prisão, enfim, todos os aspectos que decorrem de um juízo condenatório penal. Essa é a grande preocupação do Ministério Público para os próximos meses.
O senhor fez esse pedido quando o semestre já tinha terminado. Foi uma opção consciente para deixar nas mãos do presidente? Advogados criticaram isso.
O que acontece é que a execução do julgado compete ao relator. Eu tinha já na sustentação oral feito esse requerimento e tive o cuidado de esperar a conclusão do julgamento e dois dias depois fiz o pedido. Respeito a posição do ministro Joaquim, mas continuo convencido de que pelas circunstâncias do caso, que é uma decisão plenária do Supremo Tribunal Federal, em relação à qual cabem apenas embargos declaratórios, já que os embargos infringentes não mais são admissíveis, e esses embargos não têm efeitos modificativos, então acho que é possível que se dê execução da decisão, que não será provisória, mas seria a execução definitiva.
E agora, a efetividade do julgamento corre risco?
Meu temor é assistir cenas como as recentes fotos do [empresário Carlinhos Cachoeira, condenado em primeira instância mas em liberdade] no resort. Isso demonstra a falta de efetividade da Justiça. Essa é a preocupação que o Ministério Público tem. Nosso sistema processual é muito generoso e muito propício a certas manobras da defesa. Temos ainda que aguardar a publicação do acórdão. Não tenho dúvida de que tentarão ainda a tese do cabimento dos embargos infringentes e começam então os embargos declaratórios. Em princípio, todos os réus que desejassem propor esses embargos, deveriam fazer numa mesma oportunidade, após a publicação do acórdão. Mas ao meu ver, dificilmente deixaremos de ter embargos sucessivos. Ou seja, num primeiro momento, alguns réus opõem os embargos, ai vem uma primeira decisão. Então, novos embargos são opostos por outros réus e adiante por outros e outros. Num número elevado de réus condenados, é muito fácil que o manejo dos embargos declaratórios pela defesa possa levar a um adiamento a meu ver bem prolongado da execução do julgado do Supremo.
De quanto?
É difícil fixar um prazo. Alguns falavam em maio. Mas eu acho que é muito fácil um ano aí pela frente. Agora, é muito difícil prever e eu adorarei estar enganado. Mas vai exigir um esforço ainda maior do Supremo de conseguir julgar num prazo curto. Não tenho dúvida que o Supremo também está muito preocupado em dar efetividade à decisão.
Sobre o processo do “mensalão mineiro”: há uma crítica de que os casos são tratados de maneira diferenciada. O que o senhor acha?
A posição do Ministério Público sobre isso é muito tranquila porque pediu o desmembramento do mensalão [do PT]. E o ministro Joaquim Barbosa, aliás, também votou pelo desmembramento, mas acabou vencido. A posição do Ministério Público é de que, em regra, deve haver o desmembramento até porque foi um esforço gigantesco de conseguir julgar um processo desse no Supremo. Claro que, como tudo na vida, há vantagens e desvantagens. Neste caso, houve um exame mais completo do esquema criminoso.
No caso do “mensalão mineiro”, o senhor também aposta em condenações das autoridades ligadas ao PSDB?
Acho que é uma questão da prova que for possível reunir. Se reunir a prova necessária, não há nenhum motivo para que não haja condenações.
Hoje, dá para dizer que está avançada?
Curiosamente, fala-se muito da questão da prerrogativa de foro, mas as ações que estão no primeiro grau não estão no mesmo estágio do que ficou no Supremo. Pode demorar um pouco. Acho que a conclusão do julgamento do mensalão vai ter um efeito de pressão, de acelerar a tramitação deste outro.
Vimos recentemente o possível futuro presidente da Câmara, Henrique Eduardo Maia, dizendo que, se eleito, não irá cumprir a decisão do Supremo sobre a perda dos mandatos. No ano passado, o atual presidente, Marco Maia, chegou a dizer que poderia abrigar os deputados, caso tivessem que ir para a cadeia. Como o senhor vê essas declarações?
O ministro [do STF] Celso de Mello, em seu voto, disse tudo. Citando Rui Barbosa, ele disse que quando se trata da interpretação da Constituição, a ultima palavra é sempre do Supremo e aos outros Poderes só cabe cumprir essa decisão do Supremo. É o que eu vejo. Só cabe a qualquer presidente de bom senso acatar essa decisão e dar cumprimento. Eu acho que será inconcebível que a presidência da Câmara venha a negar cumprimento a uma decisão do Supremo. E a questão de uma espécie de asilo, abrigo, isso é mais absurdo ainda. Não pode a Casa legislativa se transformar em esconderijo de condenados.
No caso de descumprimento, cabe sanção?
Em tese, caracteriza sim crime.
Qual?
Ai teremos que enquadrar no devido tempo, mas não há dúvida que é uma conduta que tem sim feição de responsabilidade penal.
Há medidas, então, a serem tomadas pelo próprio procurador-geral?
Como sempre. As batatas quentes são sempre aqui.
A gente vê esse tipo de tensão em diversos temas. É o caso, agora da distribuição do Fundo de Participação dos Estados. Se o governo pagar, sem base legal, não pode também criar problemas?
Pode. Acho que o Supremo deu prazo muito generoso e realista [ao, em 2010, mandar que o Congresso estipulasse até o final de 2012 novos critérios para a distribuição do Fundo] e isso pode acabar levando, no caso, ao que muitas vezes se critica, que é o Supremo adotar uma postura de acabar suprindo essas omissões do legislador para impedir esse vácuo legislativo.
Sobre o poder de investigação do Ministério Público, o senhor avalia que é coincidência essa tentativa no Congresso de limitar essa prerrogativa da sua instituição.
Não é uma mera coincidência. Eu acho que se relaciona sim ao julgamento do mensalão. Veja bem. Essa proposta tramita há vários anos, mas passa uns períodos meio que dormindo, com tramitação mais lenta. Então, sem dúvida é uma curiosíssima coincidência que adquira um fôlego todo especial bem no final do julgamento do mensalão. Eu vejo e já disse isso como uma retaliação ao Ministério Público.
Partindo de quem?
De pessoas que não gostaram da atuação do Ministério Público no mensalão e acham que é preciso podar a instituição ou amputar de uma de suas atribuições mais essenciais.
E a gente percebe também a presença do ex-presidente [Collor] nessas críticas.
Eu fiz toda uma cuidadosa verificação se tinha atuado em alguma coisa relacionada ao [ex-]presidente Collor e não consegui atuar em absolutamente nada que fosse relevante. Então continuo sem entender essa verdadeira obsessão que o [ex-]presidente Collor tem demonstrado em relação à atuação do procurador-geral. É inexplicável. Na verdade, em relação a mim pessoalmente nada encontrei. Em relação à instituição, todos sabemos que o procurador Aristides Junqueira [o] denunciou por diversos crimes, mas isso seria um ressentimento contra a instituição.
Mas ao mesmo tempo, o senhor foi reconduzido ao cargo logo depois de entregar as alegações finais do mensalão. Isso significa um avanço?
Sem dúvida. Vou até dizer uma coisa a vocês. Houve essa coincidência de que o prazo para as alegações finais se esgotava logo depois do período da minha possível recondução e eu tive uma notícia por uma pessoa do governo de que a presidente da República decidiria sobre a recondução no dia seguintes ou em dois dias e o prazo das alegações finais se encerrava dois dias depois. Então pedi a essa pessoa que informasse a presidente da República que eu estava apresentando dali a dois dias as alegações finais e que apresentaria as alegações finais mantendo todas as acusações [do julgamento do mensalão], à exceção daqueles dois casos. E disse que gostaria que a presidente da República não decidisse sobre a minha recondução sem saber que eu apresentaria as alegações nesse sentido. Me garantiu esse interlocutor que daria e deu conhecimento à presidente da República, que decidiu já sabendo. Isso mostra um grande avanço.
É uma característica positiva da presidente Dilma…
Tem se aprimorado ao longo do tempo. Uma série de episódios que são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, essas retaliações, ataques pessoas, mas por outro lado, episódios como esse, que mostram que estamos
avançando muito.
Por que a polícia reage tanto ao poder de investigação?
Não vejo a polícia como um todo, pode até dizer que são amplos setores da polícia. Mas há setores da polícia que não tem essa posição radical a esse respeito. O Ministério não pretende e jamais pretendeu substituir a polícia. A polícia é voltada para isso. O que o Ministério Público defende é que a participação dele significa uma colaboração importante. As instituições devem se unir para gerar resultados mais produtivos para a sociedade.
E por que alguns setores criticam?
Vejo como algo corporativo, talvez um temor de perda de poder, mas na verdade não há essa perda de poder. A polícia terá sempre uma importância imensa na investigação dos delitos. Mas o Ministério Público tem condições, sempre de forma excepcional, de em certos casos, em razão de suas prerrogativas, melhor conduzir determinadas investigações, sempre contando com o auxílio da polícia. Como diz o [ex-]ministro [do STF] Ayres Britto, retirar do Ministério Público o poder de investigação é retirar a alma da instituição.
O senhor faz parte de um grupo dentre da Procuradoria. Ele ainda existe ou se diluiu ao longo dos anos?
Na verdade, [é] o chamado ‘grupo dos tuiuius’, que nasceu de uma brincadeira feita pelo [ex-procurador-geral] Cláudio Fonteles, que reunia pessoas que tinham uma visão semelhante a respeito do Ministério Público, centrada na independência e autonomia da instituição e trabalhar para que isso fosse consolidado. Tivemos a grande vitória na Constituição de 1998, mas era preciso concretizar esse perfil constitucional com trabalho cotidiano, iniciativas de cada dia. Esse famoso grupo representava isso. Reunião de pessoas que comungavam de um mesmo entendimento e a mesma visão de como deveria ser o Ministério Público. O esforço de honrar essa visão e luta por um Ministério Público sempre indepentente, autônomo e equilibrado.
O grupo se diluiu?
O grupo perdeu ao longo do tempo, por conta de aposentadorias, pessoas que eram muito importantes, como Cláudio Fontelles, Antonio Fernando Souza, Wagner Gonçalves. Pessoas que sempre trabalharam juntos e discutiram esses temas todos e a saída desses colegas acabou esvaziando um pouco essa ideia do grupo. Mas isso é uma corrida de revezamento.
O sr. gostaria de ser substituído por uma mulher?
Gostaria de ser substituído por alguém que leve adiante essa luta. Se homem ou mulher, ai tanto faz. Tenho as minhas duas vice-procuradora, [elas] são mulheres. Tanto a vice-procuradora geral Deborah [Drupat], como a vice-procuradora Eleitoral Sandra [Cureau] são mulheres e [isso] aí já mostra que eu sempre gostei de prestigiar as mulheres. Agora, para procurador-geral é difícil.
Pensa em aposentadoria?
O mais provável é que eu vejo essa coisa de renovação e a permanência na instituição pode até acontecer por um período curto. Mas por um período mais longo fica algo de fantasmagórico em relação àquele que foi procurador-geral e que continua circulando pelos corredores. Certo ar que não me agrade muito. A tendência então é essa [aposentadoria].
Como é ter uma esposa que é sua colega de trabalho?
Em primeiro lugar, Cláudia é procuradora por concurso. Eu sou do 5º concurso e tomei posse em julho de 1982. Ela é do 7º concurso e tomou posse em 1º de outubro de 1984. Significa dizer que ela tem quase 30 anos de instituição. Atua na área criminal há muitos e muitos anos. Eu não inovei em nada. Ela tem a mesma função na coordenação da área criminal desde os tempos do Cláudio Fonteles, prosseguiu com Antonio Fernando e eu simplesmente mantive. E mantive uma pessoa que é da carreira. O próprio [ex-]presidente Collor fala muito em nepotismo até. Mas é nepotismo concursado. E mais: isso é uma função que não tem qualquer remuneração adicional. Só dor de cabeça.
O senhor nunca se importou de ser comparado com o Jô Soares. Mas, durante o julgamento do mensalão, ficou incomodado quando um advogado de defesa fez essa relação. Por que?
Essa questão do Jô Soares, isso de muitos anos eu ia na escola dos meus filhos e quando entrava o pessoal começava a gritar: ‘Jô, Jô, Jô’. Era algo que acompanhava há muito tempo. Tem um episódio engraçado, embora seja de certa forma a confissão de um crime [risos]. Eu estava na praça de alimentação no aeroporto de Salvador [BA], de férias, e vem um garçon e me pergunta se sou o Jô Soares e eu respondo que não. Então ele diz: ‘Também achava que não era, mas minha colega ali está absolutamente convencida que o senhor é o Jô Soares, então gostaria de pedir um grande favor, que o senhor autografasse para ela’. Eu disse então que não poderia autografar por não ser o Jô Soares. Então ele disse: ‘Mas ela tem certeza que você é o Jô e vai pegar muito bem para mim se eu conseguir esse autógrafo. Coloca só assim: ‘Um beijão do Gordo’. Então, eu escrevi. Esse falso [falsidade ideológica] eu cometi. Mas isso nunca me incomodou. Mas naquele dia [em que um advogado dos réus do mensalão fez a comparação] eu achei que era um certo desrespeito. Não a mim, mas ao Ministério Público e ao próprio julgamento.