Esse artigo do Eric Nepomuceno, na Carta Maior, abriu meus olhos para a importância da Ley dos Medios argentina para fechar um ciclo histórico que teve início com os golpes militares em toda América Latina. Os dois grandes gigantes da mídia argentina, La Nacion e El Clarin, são crias do regime totalitário, o qual apoiaram e por ele amplamente beneficiados. Assim como a Globo no Brasil, o Clarin entrou na ditadura como um jornal convencional, e ao final dela emergiu como um poderoso e multitentacular conglomerado a pervadir e dominar todos os setores da comunicação social e cultura de seu país.
Agora, inclusive, entendo um ponto que não estava claro para mim antes. Uma vez, cheguei mesmo a criticar o que eu considerava os “excessos” de Cristina Kirchner. Eu estivera em Buenos Aires e ficara impressionando com a qualidade do caderno literário semanal do Clarin, que é quase uma revista, com ensaios bem escritos, contos inéditos de escritores novos ou consagrados; um suplemento notável e que faz jus à fama – merecida, aliás – argentina de ser o maior celeiro de bons escritores ao sul do Rio Grande.
Eu me lembrei de um fato histórico importante. No clássico de Jacob Burckhardt sobre o renascimento, o autor narra o declínio dos ideais democráticos que haviam florescido nas grandes cidades italianas. Em seu lugar, surgem tiranos implacáveis, genocidas, sádicos e caprichosos, cujo poder fora conquistado, quase sempre, à custa de golpes sujos, assassinato, traições. Eram usurpadores no sentido mais pleno do termo. No entanto, mesmo desprezando a opinião do povo, tinham que conquistar, ao menos, a simpatia das camadas mais cultas e abastadas da sociedade.
Então o que eles fizeram? Investiram pesadamente em cortes suntuosas, patrocinaram poetas, artistas, músicos. Construíram palácios de arquitetura magnífica. Burckhardt explica que era uma estratégia para compensar a falta de legitimidade. O séquito de poetas que os rodeavam lhes ajudavam a transmitir uma nobreza artificial, mas poderosa e eficiente.
Não quer dizer isso que a ausência de democracia ajudou a arte. Ao contrário, Dante Alighieri e Michelangelo só foram possíveis numa Florença que, durante séculos, fora uma ilha de democracia e prosperidade numa Europa imersa em trevas. E o renascimento italiano entra em decadência exatamente no momento que tiranias começam a pipocar na península.
Ditaduras de direita prejudicam severamente a criação artística, por vários motivos:
- Restringem a liberdade de expressão.
- Pioram os índices de educação.
- Pioram os índices de distribuição de renda.
As ditaduras de esquerda também prejudicam, mas sobretudo por causa do primeiro item.
Esta é a principal dificuldade hoje na luta para convencer a opinião pública brasileira de que é importante quebrar o monopólio dos grandes meios de comunicação. Dotado de incomensurável poder financeiro, os grupos midiáticos agem como uma espécie de Lorenzo de Medici pós-moderno (sem a generosidade deste): somente através de seu aval, os artistas conseguem ser bem sucedidos. Assim como naqueles tristes tempos de tirania, os artistas de hoje, de uma forma ou outra, continuam dependentes de um poder concentrado em mãos de poucos. No Brasil, onde ainda não temos uma classe média culta, esse é um problema ainda mais grave.
Mas há solução, e ela virá, como sempre, da natureza dialética da história. O fator político inscreve-se aí com muita força. A segunda geração das novas classes emergentes serão mais instruídas que seus pais, e mais exigentes, não apenas para consumir, mas para produzir. O número maior de produtores de cultura, e bons produtores, criará um sentimento crescente de mal estar diante da escassez de canais de acesso à população. O mal estar gerará insatisfação, pressão política e criação de meios alternativos. A blogosfera política de esquerda, hoje muito mais forte que sua congênere conservadora, é um sinal desses novos tempos.
A situação explica o conservadorismo crônico da classe artística. Ela é dependente dos Medici. E um artista que já conseguiu completar a sua formação cultural jamais perderá seu tempo se angustiando com outros que não se formaram. Quem já está dentro do baile não liga mais para os que esperam do lado de fora.
A mídia conservadora, por sua vez, usa a cultura como uma de suas mais importantes armas para se afirmar politicamente. Condescendentemente, abre espaço, de vez em quando, para a arte da periferia, mas sempre num contexto meio antropológico.
A concentração midiática, portanto, talvez explica a notável decadência da cultura brasileira, que parece ser um processo crônico, continuado, persistente, interrompido por soluços breves. Claro que continuamos produzindo músicos, cineastas e escritores de talento, mas numa proporção muito aquém da nossa demanda. Temos dificuldades especialmente para encontrar o equilíbrio sutil, raro, essencial, de unir uma grande qualidade artística com uma linguagem de acesso relativamente popular. Não confundir com vulgarização da cultura. Refiro-me à independência necessária de guetos acadêmicos e midiáticos, os quais, tradicionalmente, criam um universo cultural paralelo, que no Brasil chega a parecer esquizofrênico, de tão apartado da vida e dos anseios reais da sociedade.