Permitam-me filosofar um pouco sobre moral e política.
Numa de suas deliciosas canções, Erasmo Carlos faz uma observação aguda sobre a vida, que gostaria de aplicar – pedindo perdão ao cantor pela heresia – à política brasileira. Quando crianças, diz a letra, mesmo não sabendo nada, temos a ilusão de saber tudo; adultos, diante das situações complexas e aparentemente insolúveis com que nos deparamos constantemente na vida e na política, admitimos a nós mesmos que não entendemos nada.
Acho que a metáfora vale para os petistas e simpatizantes, em geral. Antes da vitória do PT a nível federal, eles achavam que sabiam de tudo, mas eram crianças (politicamente falando) e não conheciam, na prática, os ardilosos mecanismos da máquina pública e das grandes e complexas articulações partidárias. As pessoas, por isso mesmo, lhes tratavam com condescendência e carinho, como fazemos com nossos filhos. Artistas e celebridades desfilavam com estrelinhas no peito, sem receio de represálias.
Depois de tudo por que passaram, a sequência quase épica de vitórias, derrotas, derrapadas morais, reencontros, decepções e júbilo, o mundo hoje lhes enxerga com a severidade que dedicamos às pessoas experientes. Surfaram nos anseios democráticos do povo, ocuparam o poder, adaptaram-se às circunstâncias e agora contemplam, estarrecidos, alguns correligionários serem capturados em crimes de corrupção. O mundo não é condescendente com adultos.
Ao estudar o desencanto crônico das pessoas comuns, a perplexidade e indignação de militantes e jornalistas progressistas e, sobretudo, ao constatar, tristemente, que o petismo, de fato, não gerou nenhuma revolução ética na política nacional, cumpre voltar à letra de Erasmo e declarar que, em verdade, somos almas atarantadas e ignorantes. Não entendemos nada. E não adianta pedir desculpas.
Lembremos o que diz Immanuel Kant, na abertura de sua Crítica da Razão Pura:
Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência (…)
Por isso, eu defendo a tese de que o verdadeiro PT, aquele que hoje conhecemos, apenas se revelou após sua ascensão ao poder federal. Com todos seus defeitos: cinismo, pragmatismo, arrogância e corrupção. Mas também com suas virtudes: genuína preocupação com os mais pobres (mais crédito, maior salário mínimo, programas sociais) e com o desenvolvimento nacional (ajuda às indústrias, juros mais baixos), objetividade política, surpreendente inteligência eleitoral, criatividade incrível para obter resultados grandiosos através de ideias relativamente simples (prouni), e humildade para manter e tonificar programas existentes (bolsa família, pronaf).
É muito confortável idealizar um PT visto pelas lentes sempre róseas do saudosismo, assim como é muito mais fácil amar uma criança, com sua pureza e inexperiência, do que amar um adulto marcado pelas duras experiências, tentações, cicatrizes e vícios do mundo.
Quanto à corrupção na política, trata-se de um vício inerente à raça humana. Claro, as circunstâncias históricas influenciam. A mídia, por exemplo, jamais lembra a seus leitores que a ditadura militar, que ela sustentou, detonou todos os instrumentos que o Estado possuía para se defender: quem seria o corajoso para mandar denunciar o presidente de uma estatal, um oficial militar com poder de prender o denunciante como “subversivo” e torturá-lo até que ele “confessasse” qualquer coisa? Judiciário, auditorias, tribunais de conta, polícia, tudo submergiu ao totalitarismo, que por sua vez censurava qualquer denúncia na imprensa – transmitindo à classe média a sensação de que as coisas estavam em ordem.
Nos livros de Elio Gaspari sobre a ditadura, o que mais me impressionou foi a gigantesca anarquia e corrupção que grassava no Estado, sem que a sociedade soubesse.
Os instrumentos de controle da máquina pública ainda eram incipientes nos primeiros governos pós-militares, e não podemos esquecer que, no governo FHC, tivemos escândalos de proporções bíblicas, mas que, com ajuda da mídia, não se transformaram em protestos de massa, nem se converteram em campanhas de tom apocalíptico para derrubar ministros ou presidentes, conforme vemos na era Lula/Dilma. A Polícia Federal havia sido sucateada e o Ministério Público também não tinha metade da autonomia e altivez que tem hoje. Por fim, não haviam sido implantados os sistemas de transparência dos gastos públicos.
Este domingo tivemos um deslumbrante sol no Rio, por mim devidamente homenageado na praia do Leme, curtindo água de coco e a leitura de uma pequena novela de Mark Twain, intitulada The Man That Corrupted Hadleyburg. O homem que corrompeu Hadleyburg. A história conta a vingança de um homem contra a até então incorruptível cidadezinha do sul, que se orgulhava da fama de ser o lugar mais honesto dos Estados Unidos. Ser cidadão de Hadleyburg era sinônimo de ética. Pensei automaticamente no antigo PT.
O tal homem havia sido injustamente ofendido na cidade e elabora uma terrível vingança: iria desmoralizar e corromper toda a cidade, ou pelo menos suas famílias mais importantes. Não vou entrar em detalhes, só adianto que ele conseguiu, e a história se desenvolve com muito humor. O homem constatou que seus cidadãos mantinham suas crianças e adolescentes sempre longe de qualquer tentação, e entendeu que isso constituía um ponto fraco, visto que o caráter de uma pessoa apenas pode se fortalecer ao fogo das provações da vida. É um pensamento nietszchiano, praticamente, e acho que vale para a nossa política. Vale para nós mesmos. É muito fácil a gente se considerar puro e incorruptível enquanto leva a nossa vidinha civil, longe das tentações do poder. Quer dizer, podemos até estar seguros de nossa ética caso exercêssemos altos cargos políticos, mas podemos falar a mesma coisa de nossas secretárias, assistentes, e todos os colegas de luta que, após uma vitória eleitoral, partilhariam conosco das benesses, algumas merecidas, do Estado?
Ética é uma obrigação de todo cidadão, independente do grupo a que pertence, e não adianta combater corrupção com papo furado, editoriais e pedidos de desculpa, e sim com a instituição de transparência nos gastos e criação de mecanismos de auditoria e controle, ou seja, fortalecendo o Ministério Público, a Polícia Federal, o Judiciário e as auditorias. E disso ninguém pode acusar o PT. Ele ajudou a fortalecê-los de tal forma que hoje corre até o risco de ser derrubado por um MP e um Judiciário que se acham (antidemocraticamente) mais importantes que o governo e o Legislativo. E por setores da PF cujos vazamentos à mídia são sempre contra o próprio governo. Enfim, o nosso conhecimento sobre ética e nossa fortaleza nesse sentido apenas podem se consolidar pela experiência. Pela dura, triste, decepcionante, desolada, mas a única verdadeiramente redentora experiência.