Haddad e o voto conservador

Comecei bem o dia, lendo um artigo de Reinaldo Moraes. Nosso mestre em profano faz uma defesa do voto em Haddad citando o padre Vieira, nosso mestre em sagrado.

Moraes, símbolo mais forte de São Paulo, a cidade mais conservadora e mais liberal do Brasil. A sua obra reúne os extremos: de um lado, um cosmopolitismo esfomeado, cheio de audácia e brutalidade; de outro, o respeito profundo e apaixonado pela tradição gramática e pelos cânones da literatura. Rimbaud e Machado de Assis. Movimento beat e Nelson Rodrigues. As duas forças contraditórias que movem os heróis: uma ilimitada generosidade, revolucionária e sem escrúpulos, aliada a um supremo egoísmo que, no entanto, respeita as leis.

De seu jeito paulistanamente desconfiado, Moraes elogia Dilma que, segundo ele, “vem dando conta do recado” e considera que Haddad “será um prefeito razoável”.

Logo abaixo, o humorista Marcelo Madureira, um reacionário histérico e exagerado, que põe a ideologia acima do bom senso (a ponto de afirmar que Glauber Rocha “é uma merda”), defende, naturalmente, José Serra.

Curioso notar que, enquanto Moraes, um ficcionista especializado em situações absurdas e atemporais, defende o voto em Haddad tendo em vista os interesses concretos da cidade de São Paulo, Madureira, um humorista especializado em piadas políticas baseadas na realidade atual, apóia Serra ancorado em argumentos genéricos sobre “mensalão” e ameaças abstratas do “lulismo” à democracia…

Moraes, no início de seu artigo, cita a seguinte frase de Vieira: “Tempo houve em que os demônios falavam, e o mundo os ouvia; mas depois que ouviu os políticos, ainda é pior mundo”. O escritor, todavia, pondera:

Sou forçado, porém, a reconhecer que é deles que a gente depende se quiser ver os grandes antagonismos sociais, econômicos, culturais e religiosos de um país, região ou cidade acomodados numa arena política civilizada, ainda que mal e porcamente (e não a ferro, fogo e sangue nas ruas, como hoje na Síria, por exemplo).

Vai daí que fica difícil defender a opção pela neutralidade quando chega a hora da onça beber voto num país, como a nosso, que tenta a muito custo se ver como democrático.

Agora, em São Paulo, a onça está a postos, radicalmente polarizada entre dois contendores de peso.

De um lado, José Serra, o velho político do já encarquilhado PSDB. Um partido que, de tanto se aliar aos remanescentes da velha Arena, criada pelos milicos da ditadura para lamber-lhes regularmente os coturnos, já vai se encaminhando para o seu irremediável ocaso.

Como já li os livros de Moraes, sei que ele é quase um anti-esquerdista, mas não um reacionário obtuso como lamentavelmente se tornaram Ferreira Gullar, Ubaldo e Nelson Motta. Moraes, para entendê-lo melhor, é ex-marido e pai das filhas de Maria Rita Kehl, notável intelectual de esquerda, hoje membro da Comissão da Verdade. Sua declaração de voto em Haddad, os elogios à Dilma, e a condenação que faz ao PSDB, mostram que o partido realmente entrou em processo de falência múltipla de órgãos.

Porque se Moraes é quase anti-esquerdista, ele é total e absolutamente anti-direitista. Em seus romances, ele zoa o esquerdismo, mas o direitismo, esse sequer merece sua atenção. Apenas desprezo. Certamente porque Moraes é, sobretudo, um humanista, um conceito infinitamente mais poderoso e universal do que o de “esquerdista”.

Qualquer mané pode se dizer de esquerda. Roberto Freire, por exemplo. Ou Plínio de Arruda Sampaio, candidato a presidente do PSOL, legenda que se acha a única guardiã dos ideais de esquerda no país, quiçá no mundo. Ambos preferem José Serra.

Se a política é braba hoje, imagine no tempo de Vieira, final do século XVII. Compreende-se, portanto, que ele tenha comparado políticos a demônios. A frase, todavia, é um pouco ultrapassada no ambiente democrático. Prefiro outra, do mesmo Vieira, extraída do Sermão I do Quarto Sábado da Quaresma:

O passado e o presente, porque foi e é pecado, é a suma miséria; mas o futuro, porque ainda há de ser, sobre ser a suma miséria, é o sumo perigo.

Ou seja, os erros do passado são responsáveis por nossa miséria atual, mas sobre eles não há mais nada a fazer. O maior perigo reside nos erros que cometemos agora, pois estes comprometerão o nosso futuro. E o maior erro seria, por exemplo, eleger um homem frio e sem imaginação como José Serra.

Além de Vieira, também separei alguns pensamentos de Espinoza para o post de hoje. O filósofo, em sua obra Tratado Político, faz uma série de ataques ao pseudo-moralismo em questões de Estado. Logo na abertura, defende que a política e os políticos sejam vistos como são, e não como utopia irrealizável, manejada por arcanjos que nunca existirão. E, alguns capítulos depois, afirma

Pouco importa à segurança do Estado que motivo interior têm os homens para bem administrar os negócios, se de fato os administrarem bem. Com efeito, a liberdade da alma, quer dizer, a coragem é virtude privada; a virtude necessária ao Estado é a segurança.

Quando votamos num governante, não importa se ele quer o poder por vaidade, ou se não simpatizamos com seu partido. O eleitor deve atentar para a qualidade de sua gestão. Esse é o maior erro de José Serra. Ele tenta apelar para o antipetismo, mas o paulistano já não dá atenção a isso. Ele avalia bem a gestão petista no governo federal, mesmo que discorde ideologicamente do partido e torça pela condenação dos “mensaleiros”. Para ele, é mais seguro votar em Haddad, porque entende que é um jovem que governará com entusiasmo, competência, terá uma bancada legislativa sólida, e pertence ao maior partido brasileiro, que detêm a presidência da república.

Isso explica, por exemplo, que Haddad esteja vencendo Serra inclusive entre os conservadores. Aliás, visto que os conservadores constituem, segundo pesquisa, maioria no município, o petista apenas poderia ultrapassar o tucano se estivesse à frente também entre estes.

 

 

Em outros termos, o paulistano pode ser conservador, mas não é trouxa. Se ele entende que o PT pode fazer um melhor governo, não está nem aí para as motivações ideológicas por trás da legenda. Vai de 13 e pronto. Além do mais, tanto o eleitor comum, conservador ou não, como Espinoza, sabem muito bem que todo político e todo partido quer ganhar eleições para ampliar seu poder. É da natureza humana; mais ainda, é da natureza política. O PSDB também não quer fazer o mesmo? Na verdade, é motivo de justa suspeita ver um partido que afirma não querer o poder. É como um vendedor de carro afirmar que não quer ganhar dinheiro. O sujeito simplesmente perde a credibilidade, porque o eleitor/comprador verá apenas hipocrisia e falsidade. Os falsos e os puros convivem no mesmo balaio.

Hoje, com auxílio de Vieira e Espinoza, falei dos falsos; na próxima vez, falarei dos puros.

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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