(Juliano Guilherme)
Um julgamento para a história – I
Por Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político, publicado em primeira mão no Cafezinho
A lógica é patrimônio genético. Escapou de arrogante seqüestro pela corporação dos economistas, durante a ditadura, e sobreviverá à pernóstica tentativa da corporação de magistrados. O Supremo Tribunal Federal vem sendo responsável por sensíveis decisões, modelando legalmente um país mais livre, mais tolerante e adaptado aos já visíveis indícios do futuro. Matérias polêmicas como aborto, células tronco, direitos de homo-afetivos, por exemplo, encontram no Supremo uma instância de discussão protegida de temores irracionais ou convicções intensas, que, não menos legítimas por serem privadas, não podem impor-se à convicção dos demais. Assim como outras, contudo, a instituição está submetida aos limites da condição humana. Vários de seus membros, em momentos diversos, vêem-se cativos dos humores e miopias que os tornam pessoas comuns. Em casos extremos, juízes há que saboreiam o prazer de punir, antes que a amargura por condenar. O pâncreas contamina a lógica.
Demonstrada ficou nesta semana de setembro, por meticuloso trabalho do relator Joaquim Francisco, a rebuscada senda percorrida por recursos clandestinos até às mãos de alguns políticos de quatro partidos: PP, PL, PTB e PMDB. E pela primeira vez, salvo engano, revela-se a extensão em que o financiamento político paralelo, e ilegal, conduz de notas fiscais forjadas a contas bancárias fictícias, destas a fraudes financeiras e, em sucessão de ilícitos, à distribuição de dinheiro sem controle, fiscalização ou conhecimento do público e das autoridades. À sombra dessa cadeia de operações plásticas praticam-se roubos vulgares, despesas amorosas, desvios oportunistas. Se os autos ajudam a esclarecer o início e o desdobramento desse processo – que não é outro senão o processo do caixa 2 revelado em sua intimidade e efeitos colaterais – encontra-se fora dos autos a sua causa eficiente. Que estímulo tão poderoso conduz partidos e políticos a colaborarem em arquitetura tão diabólica? Explicações fundadas em patologias psicológicas não me convencem.
Uma das causas eficientes da instauração do caixa 2, senão a principal, é a própria legislação eleitoral brasileira. A matéria não se limita à disputa entre financiamento público ou privado, mas à natureza aleatória e voluntarista com que regras foram sendo elaboradas, quase que por sobreposição, afetando todos os aspectos da competição pelo poder, valendo-se cada uma delas de princípios não necessáriamente consistentes, criando mercados milionários em torno das campanhas eleitorais, confundindo, sem argumentos persuasivos, aspectos tão relevantes como a formação e comportamento de coligações, tanto eleitorais quanto parlamentares, mobilizações de rua, tempo de propaganda nos meios de comunicação, e mais, muito mais. Ao contrário de, pelo menos, sugerir a investigação desse território, o ministro relator e muitos de seus pares acobertam a contribuição ativa da legislação e da justiça eleitoral para a criação do ambiente altamente litigioso dos episódios eleitorais a cada dois anos. Não reconhecem as notícias dos jornais desta mesma semana, com impugnações, multas, candidaturas sub judice, decisões judiciais variando conforme o município e a região do país. Embora adotando na Ação Penal 470 a tese de que o destino do dinheiro ilegalmente distribuído é irrelevante, excetuam, sem hesitação, a hipótese de que tenha tido por roteiro servir aos interesses do Partido dos Trabalhadores. Substituem a busca das causas eficientes do processo pela afirmação apriorística de uma causa teleológica, finalística: servir a objetivos criminosos de um Partido.
Aqui, na interpretação da laboriosa e bem sucedida pesquisa que encetou, começa a parte pouco feliz da participação do ministro Joaquim Barbosa, nesta segunda e quarta-feiras. Sua referência irônica a alegado acordo entre o PT e o PP revela pouco conhecimento (caso não tenha sido deselegante deboche) dos sistemas eleitorais proporcionais. Precisamente porque garante a representação das minorias, tais sistemas dificultam a formação de parlamentos com um partido capaz de dispensar todos os demais para votar seus projetos. Sistemas de representação proporcional condicionam governos de coalizão, bastante freqüentes em todas as democracias. E freqüentes também são as coalizões entre partidos não adjacentes (coligações entre PT/PSB ou PSDB/DEM são coligações adjacentes, pela inexistência relevante de partidos no intervalo ideológico entre eles). O Partido Social Democrata da Suécia manteve-se no poder por cerca de 30 anos, gerando uma sociedade avançada em todos os sentidos, em coligação com o partido de base agrária (coligação não adjacente), um dos mais conservadores de sua história. No Brasil, as coligações se fazem entre as mais diferentes legendas em todas as eleições dependendo do estado ou município. A interpretação desse fenômeno político eleitoral não está nos autos, mas nos inúmeros almanaques de dados sobre a história eleitoral de todas as democracias. Em nenhuma delas, é crime, seja antecedente ou conseqüente.
Conseqüência crucial destes sistemas é a constante necessidade de negociação interna entre os partidos da coligação, no governo ou no parlamento, até que se alcance a fórmula aceitável para apresentação de cada proposta política ao Legislativo, onde sofrerá novas negociações, inclusive com a oposição. Processo demorado e exasperante, sem dúvida, desembocando em outro fenômeno peculiar das democracias: as maiorias finais em uma votação costumam ser constituídas pelo somatório de sub-maiorias com resíduos de insatisfação em todas. Em geral, as propostas aprovadas não correspondem ao plano original de nenhuma das sub-maiorias. Terça-feira, dia 18 de setembro, foi aprovado o Código Florestal com o apoio praticamente unânime de todos os partidos representados na Câmara, inclusive do PSDB, do DEM e do PPS (o maior número de descontentes explícitos alojava-se no PT). As declarações dos líderes apontavam para o caráter insatisfatório da legislação aprovada. A análise das votações parlamentares é complexa e sutil e a literatura rejeita ilações abruptas e simplórias.
Terminarei, por hoje, registrando rapidamente como as três votações interpretadas pelo ministro relator – lei de falências, reforma tributária e previdenciária – só por incrível distorção do que ocorreu no parlamento poderiam comprovar o argumento teleológico do relator de que o dinheiro ilícito recebido por políticos do PP e do PL correspondia a pagamento prévio ou posterior dos votos que deram. A valer a lógica do ministro, restaria explicar quem pagou os votos, por exemplo, do PSDB e do DEM nas mesmas votações previdenciária e tributária. Os dados estão nos arquivos digitais da Câmara e os citarei no próximo artigo.