(Ilustração capa: Francesco Clemente)
O escândalo político conhecido por “mensalão” muito se assemelha a um episódio marcante da história francesa, o caso Dreyfus. No final do século XIX, um oficial judeu foi acusado de alta traição. Houve grande comoção nacional, e a imprensa francesa que vivia um momento de enorme expansão, não só em virtude das novas tecnologias de impressão, como também por causa das maiores liberdades que a III República lhe conferia, tornou-se o tribunal político por excelência de todos os escândalos.
Os jornais, em verdade, tinham ainda mais prestígio do que hoje, embora talvez menos poder efetivo. Tinham mais prestígio porque todos os grandes escritores colaboravam diariamente para os jornais: num dia lia-se um artigo de Marcel Proust sobre cidades antigas, n’outro um panfleto político assinado por Zola; na Inglaterra, Dickens publicava seu primeiro romance, As aventuras do Sr.Pickwick, em fascículos semanais inseridos no periódico no qual trabalhava. Marx publicava constantemente artigos em diversos períodicos europeus e a direita possuía um verdadeiro exército de escritores talentosos e prolixos que atacavam diariamente seus adversários.
Oswald Spengler, em seu famoso Declínio do Ocidente, aborda o emergente poder midiático, que havia operado um incrível milagre. Antes os reis tinham necessidade de anunciar ameaças de prisão e morte para que os cidadãos se decidissem entrar em suas guerras; com o advento da imprensa, uma boa campanha midiática fazia com que milhões se dirigissem voluntariamente, alegremente, às carnificinas em que seriam sacrificados. Nascia o Leviatã midiático.
E digo que a imprensa da época tinha “menos poder efetivo” porque, apesar do prestígio, não existiam os impérios midiáticos-financeiros que hoje dominam a comunicação de massa no mundo.
Voltando ao caso Dreyfus, a imprensa e lideranças políticas haviam se comprometido de tal forma com um discurso acusatório, que a sua absolvição corresponderia a uma tremenda derrota. Então passaram a inventar provas, a magnificar boatos, a produzir um ambiente conspiratório de tal magnitude que qualquer um que ousasse defender Dreyfus, ou simplesmente exigir que fossem apresentadas provas mais consistentes de seu crime, eram também atacados violentamente.
Criou-se logo uma guerra entre os “dreyfusards”, defensores da inocência de Dreyfus, e os “antidreyfusards”, confiantes em sua culpabilidade.
Ao cabo, descobriu-se que Dreyfus era inocente, e que promotores, agentes do governo, juízes e militares haviam se acumpliciado para forjar provas contra o judeu.
O processo que culminou em sua inocência passou por altos e baixos, e mobilizou profundamente a opinião pública francesa. Ninguém escapava daquele binarismo, de defender ou acusar Dreyfus, porque de uma forma ou outra a sua opinião, mesmo que indecisa, acabava por ser alinhada, à sua revelia, a um dos grupos.
Com o mensalão ocorre uma situação bem parecida. O calor da acusação pareceu contaminar juízes, promotores, imprensa e amplos setores da opinião pública.
Alguns escritores de internet passaram a discorrer sobre o mensalão com um tal grau de convicção que dividiam as pessoas entre aquelas que acreditavam e não acreditavam no mensalão, em geral menosprezando as últimas como seres fora da realidade.
Quando a temperatura política amainou, e as pessoas começaram a tomar coragem de olhar o assunto de maneira mais desapaixonada, muitos passaram a se perguntar: mas… e se o caso não passou, por fim, do uso de caixa 2; e se não houve compra de votos?
Diante desta possibilidade, houve uma nova reação: caixa 2 também é crime! E os “dreyfusards” eram acusados, portanto, de minorarem o “mensalão”, ou seja, de “não acreditarem no mensalão”. Dreyfus é culpado e ponto final!
Assim como o caso Dreyfus, o mensalão se tornou um embate antes ideológico do que jurídico. E agora, quando o caso enfim terá seu julgamento definitivo, os ânimos voltam a se exaltar, e os antidreyfusards da mídia afiam suas espadas. Hoje, por exemplo, a trinca Globo, Folha e Estadão fazem ataques calculados.
O Globo, com sua truculência costumeira, dá manchetão:
O Estadão noticia com estardalhaço a argumentação esdrúxula do ex-relator da CPI dos Correios (aquela conhecida como CPI do fim do mundo, que investigou o mensalão), Osmar Serraglio, de que “provas do escândalo não foram produzidas por causa da blindagem a José Dirceu”. Ou seja, o homem confessa que não há provas. Quando perguntado que blindagem era essa, desconversa:
Não que estivessem dentro da CPI agindo sob orientação do Dirceu, mas a tropa de choque que dificultava a evolução da investigação era formada por (Carlos Augusto) Abicalil, (Jorge) Bittar e Ideli (Salvatti, hoje ministra de Relações Institucionais do governo Dilma Rousseff), que era senadora à época.
Ou seja, o próprio Serraglio admite que os “defensores” de Dirceu não estavam sequer dentro da CPI. O advogado de Dirceu, ouvido pelo próprio jornal, contesta facilmente a acusação de Serraglio lembrando que os sigilos bancários, fiscais e telefônicos de Dirceu foram quebrados, assim como de muitos outros, e nada foi encontrado contra o deputado.
Não estou dizendo que Dirceu seja um anjo, nem mesmo inocente. Eu simplesmente repito o que o próprio Serraglio, relator da CPI que investigou o mensalão, afirma: não há provas. E se não há provas, então Dirceu deve ser absolvido, a menos que pretendamos rasgar a Constituição (e o jornalismo) condenando alguém sem provas.
A Folha, por sua vez, continua dando trela para o falastrão Roberto Jefferson, que diz “qualquer coisa”. A nova do Jefferson é que ele e seu advogado “divergem” sobre a participação de Lula. Jefferson acredita que Lula “não sabia”, enquanto seu advogado vai alegar que Lula não apenas sabia como autorizou o esquema. Ou seja, o advogado de Jefferson, que é um homem de partido, vai acusar o ex-presidente sem provas, e sendo contestado por seu próprio cliente, que em tese é a única pessoa que, num primeiro momento, falou sobre o mensalão.
O jornalista Leonardo Attuch, responsável pelo Brasil 247, conseguiu elaborar uma teoria que tem o mérito de satisfazer a todos os gostos: foi mesmo caixa 2, mas o dinheiro, transferido no ano seguinte, tinha o poder de influenciar o voto dos parlamentares. De fato, mas aí temos uma vulgarização do voto parlamentar, por um lado, e a sua criminalização ao mesmo tempo. Qualquer coisa pode influenciar seu voto, qualquer coisa é mensalão. Se eu faço um acordo de campanha, que implica em partilhar gastos, e pago parte das dívidas durante um mandato, estou patrocinando mensalão. Se libero emendas parlamentares, mensalão. Se dou cargos ao partido, mensalão.
Ora, política é um jogo de poder, pesadíssimo. As pessoas de bem lutam para que a política seja sempre aprimorada e conduzida de maneira ética, mas a pressão dos interesses econômicos, sociais, partidários e corporativos, fazem parte da democracia. A teoria de Attuch, mesmo tendo mais lógica que o “mervismo pigal” (para usar a expressão engraçada de PHA), esbarra em outras contradições.
- A troco de quê petistas, pertencentes não só ao partido do governo como de alas partidárias convergentes daquelas dominantes, como deputado Luizinho ou João Paulo Cunha teriam que receber dinheiro, mesmo que sobras de campanha, para votar a favor do governo? Não faz sentido.
- O acompanhamento das votações no Congresso mostram que não há relação entre os repasses e o aumento de votação em favor do governo.
Por fim, a imprensa, que é o principal agente antidreyfusard nessa história, até agora não conseguiu mostrar um mísero parlamentar que acuse o governo de ter lhe pago um “mensalão” para votar tal ou qual reforma; ao contrário do que aconteceu no escândalo da emenda da reeleição de FHC, onde temos áudios, publicados na grande imprensa, no quais deputados admitem ter recebido 200 mil reais, cada um, para votar em favor da extensão de poder ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, mensalão de verdade, provado com áudio, admissão e, sobretudo, com a aprovação de uma lei que ampliava o poder do grupo então dirigente, aconteceu mesmo no governo FHC.
Ali sim, na reeleição, houve um “golpe branco”, porque o presidente mudou as regras com o jogo em andamento, para beneficiar a si mesmo. A reeleição apenas teria legitimidade se o presidente fizesse um plebiscito nacional, como fez Chávez. É realmente engraçado que a mídia brasileira tenha aceitado tão passivamente, como um ato democrático, que FHC promovesse uma mudança constitucional que permitisse a reeleição de si mesmo. Ele até poderia fazê-lo, mas ou com plebiscito, ou implementando a mudança para futuros mandatários.
Para piorar, FHC segurou o câmbio artificialmente, elevando a dívida pública em dezenas de bilhões de dólares, durante todo o processo eleitoral de 1998, para assegurar uma falsa estabilidade econômica que lhe permitisse continuar no poder, o que consistiu talvez no maior crime de improbidade administrativa de muitas décadas. Recentemente, a Justiça Federal condenou os réus ligados ao crime do caso Marka (que é um escândalo ligado àquela crise cambial) a pagarem indenização de R$ 24 bilhões.
Sem falar na privataria tucana, onde os valores desviados também chegaram a bilhões, e sobre a qual temos um arsenal de documentos envolvendo grão-tucanos, entre eles o candidato José Serra.
E os antidreyfusards da mídia ainda tentam nos convencer que os R$ 55 milhões que o PT pegou emprestado para pagar dívidas de campanha – que inclusive já foram devidamente quitadas, e que segundo o TCU não envolveu dinheiro público – é “o maior caso de corrupção da história”…