Semana passada, ainda em Brasília, achei no fundo da mochila um livrinho de Anatole France, Os Deuses tem sede, uma recriação dos tempos sombrios do Terror francês, quando os revolucionários cortavam cabeças como quem escova os dentes e a cultura do dedo-durismo e espionagem da vida alheia transformara-se no esporte preferido de muitos parisienses. Usei-o como calço de um dos projetores que fazia o lançamento das legendas eletrônicas em português.
O livro fornece um excelente material para quem estuda a evolução do totalitarismo político, e naturalmente foi usado pela direita francesa para detonar os jacobinos. Os franceses até hoje discutem acaloradamente os prós e contras de 1789, mas a grande maioria ainda se orgulha de seu país ter sediado o despontar das primeiras luzes libertárias da idade moderna.
Enfim, os conceitos de liberdade e democracia continuam polêmicos, conforme eu pude comprovar ontem assistindo uma publicidade do Instituto Millenium no horário nobre da rede Globo. Um grupinho de manés discute se deve passar o feriado na praia ou na montanha, e aí votam pela melhor decisão: esta é a síntese de democracia do Millenium. Depois uma garota liga pra uma amiga, combinando sair à noite: exemplo máximo de liberdade.
Muito bem, eu adoro viver num país livre. Ontem comprei num sebo a primeira edição do Tanto Faz, o clássico beat de Reinaldo Moraes, por 1 real! E sobre minha mesa repousa uma versão original de Naked Lunch, do William Burroughs. Não sei se teria essa moleza toda na China.
Por outro lado, mal consigo tomar minha cerveja em paz na Lapa, sem ser abordado a cada meia hora por um farrapo humano pedindo dinheiro e já abandonei muitos sonhos em prol de uma vida que me permita, ao menos, pagar o plano de saúde da minha esposa.
A gente passa boa parte do tempo sacudindo, meio que desesperadamente, a árvore da vida, para ver se cai alguma fruta no chão. De vez em quando o esforço vale a pena, sobretudo se há gente boa junto com você lhe ajudando.
Foi o que aconteceu nos dias 12 a 22 de julho, durante os quais trabalhei no I Festival Internacional de Cinema de Brasília, o agora famoso BIFF (Brasilia International Film Festival). Todo mundo trabalhando duro em prol da cultura e da liberdade!
E o melhor: ninguém precisa do Instituto Millenium, aquele covil de reacionários, pra defender esses valores. É muito fácil posar de paladino da liberdade quando se é dono do maior grupo de comunicação do país e não se sabe o que fazer com tanto dinheiro.
O difícil, como dizia Maiakósvski, é a vida e seu ofício. É botar a mão na massa, investir tempo, trabalho e dinheiro em projetos de risco. Mas a alegria, diferentemente do que pregava o poeta russo, não arrancamos ao futuro, mas sim do presente mesmo, à fórceps!
O BIFF me permitiu conhecer melhor Brasília, essa garota que se finge de ingênua mas é astuta como um sertanejo, os pés fincados numa terra provinciana mas com olhos voltados para um céu imenso, cheio de infinitas esperanças. Uma cidade de gente simples, por tantos anos explorada por uma elite extremamente corrupta, e que aparentemente começa a acordar deste longo pesadelo.
Afinal, a liberdade não se promove com anúncios retardados do Millenium. Ela é uma conquista gradual, através da promoção da cultura e do conhecimento, pois somente conhecendo o outro aprendemos a conhecer a si mesmos, e só conhecendo a si mesmos seremos livres.
Por isso, um festival internacional de cinema, realizado no coração do país, tem uma importância transcendental, um significado político cuja importância ultrapassa inclusive a intenção de seus realizadores. Como dizia um famoso pensador alemão: “perseguindo seus interesses pessoais, os homens fazem história e são, ao mesmo tempo, as ferramentas e os meios de qualquer coisa de mais elevada, de mais vasta, que eles ignoram, e que eles realizam de maneira inconsciente”.
Nesse contexto, o BIFF foi importante não apenas pelos filmes que trouxe ao Brasil, filmes que jamais serão exibidos em circuito comercial, como o norueguês Oslo 31, que eu assisti umas oito vezes, porque que não possuía subtítulos em inglês e cujas legendas eletrônicas em português eu lançava manualmente – como fiz a primeira vez, e deu certo, não tive coragem de entregar a responsabilidade a mais ninguém.
(Olso 31)
O BIFF foi importante também pelos encontros sociais entre cineastas, cinéfilos, estudantes e produtores. Pela alegria das festas, jantares e conversas que aconteciam nos bastidores do evento. Jamais esquecerei as lindas e sonhadoras “biffetes”. Jamais esquecerei a cineasta americana, de pai irlandês, mãe belga e rosto latino-americano, dançando no grande espaço aberto do museu de brasília, no centro da esplanada infinita.
(Lucy Molloy, diretora de Una Noche, que ganhou prêmio de melhor roteiro no BIFF)
Havia o alemão ranzinza que depois ficou legal, o uruguaio festeiro, a holandesa simpática. Todo mundo balançando juntos a árvore da vida.
(A colombiana Marta Rodrigues, um dos nomes mais importantes do cinema sul-americano, também participou do BIFF.)
O blogueiro agradece especialmente ao diretor do festival, Nilson Rodrigues, ex-diretor da Ancine e hoje dono de um dos cinemas mais charmosos de Brasília, o Cine Cultura Liberty, pelo carinho e generosidade com que tratou a todos.
Se Anatole France descobriu que os deuses têm sede de sangue, eu ousaria dizer que eles também têm fome, de cultura, de alegria, uma fome devoradora que somente um BIFF suculento e mal passado poderia saciar!
(Foto da noite de abertura do festival. Da esquerda para direita, o secretário de cultura do DF, Hamilton Pereira; Nilson Rodrigues, presidente do BIFF; Anna Karina, a musa da nouvelle vague francesa, homenageada pelo festival; e Anna Karina, diretora de programação do BIFF)
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