Em nota, o Itamaraty chamou o impeachment relâmpago de Fernando Lugo, agora ex-presidente do Paraguai, de “ruptura da ordem democrática”, o que é uma expressão diplomática para designar um golpe de Estado.
A reação do governo brasileiro ao golpe do Paraguai, portanto, foi dura, e desde o início, ao determinar o envio urgente do chanceler Antonio Patriota à Assunção, para tentar reverter a decisão dos parlamentares do país de promoverem a derrubada, em tempo recorde, de um presidente eleito; e articular com seus vizinhos a expulsão do Paraguai do Mercosul.
Digo isso porque estou chocado com o fanatismo antigovernamental de alguns segmentos da ultraesquerda brasileira, que perante uma situação de tamanha gravidade, ao invés de protestar contra o golpismo, reagiu – açodadamente – com críticas ao Brasil e mesmo à Lugo.
A dura resposta do Brasil, de retirar seu embaixador, emitir uma nota onde fala explicitamente em “ruptura do processo democrático”, ou seja, golpe, e usar o verbo “condenar”, o mais agressivo do vocabulário diplomático, além da expulsão do Mercosul, é especialmente louvável porque o Brasil é o país que, em tese (e numa visão medíocre e de pouca visão), mais poderia lucrar com a deposição de Lugo.
Por outro lado, o Brasil, justamente por seu peso político, precisa tomar um cuidado extremo para que suas ações não sejam interpretadas como intervenção estrangeira, ou violação do princípio da autodeterminação dos povos. Por isso achei tolo o artigo de Fernando Rodrigues, em seu blog, dizendo que temos “medo de sermos imperialistas”, e elogiando (claro!) a ação assertiva dos EUA em casos como esse. Ora, a ação do Brasil nunca vai agradar a todos, e sempre haverá interpretações variadas para o que nós fazemos, mas a preocupação em respeitar a soberania do Paraguai é também um princípio da Constituição brasileira. Analiso o texto de Fernando Rodrigues ao final do post.
Os “brasiguaios”, brasileiros com nacionalidade paraguaia, constituem hoje uma das classes mais ricas do país, atuando sobretudo na produção de soja. Apesar de Lugo jamais ter tocado na economia de soja, ele defendia uma reforma agrária que poderia eventualmente prejudicar os interesses dos grandes produtores.
O novo presidente do Paraguai, Federico Franco, sabe disso, naturalmente, e tentou uma jogada torpe. Suas primeiras declarações se dirigiram ao Brasil e à presidenta Dilma, a quem bajulou de maneira vergonhosa, e em seguida disse que o novo governo daria tratamento “privilegiado” aos brasiguaios. Ou seja, Franco tentou subornar os princípios democráticos da política externa brasileira, com vistas a nos convencer a aceitar um golpe de Estado em troca da estabilidade financeira de fazendeiros brasileiros estabelecidos no Paraguai.
Nunca vi nada tão odioso. O Brasil não quer que o Paraguai dê tratamento “privilegiado” a nenhum brasileiro. Brasileiros não são melhores que ninguém, a começar por latifundiários de soja. Queremos que o governo paraguaio seja respeitoso com os brasileiros em seu território, e aja com justiça. Por exemplo, se há necessidade de uma reforma agrária no Paraguai, e tudo indica que há, para que o país possa se desenvolver economica e socialmente, e se para isso for necessário fazer algum tipo de desapropriação em terras ocupadas por brasileiros, então que se faça. Um governo sério, e Lugo é um cara sério, evidentemente não faria nenhum tipo de violência contra fazendeiros.
Entretanto, o interesse estratégico do Brasil não é transformar o Paraguai numa grande fazenda de soja, e sim num país desenvolvido socialmente, até para ser um mercado para nossos produtos industrializados e culturais.
Há setores das elites, brasileiras e em toda América do Sul, que não entenderam ainda que o desenvolvimento social é condição necessária para o desenvolvimento econômico. Elas precisam deixar que o capitalismo da América do Sul complete tranquilamente sua evolução de um estágio medieval, pré-revolução burguesa, para uma etapa superior. Daí sim, poderemos brincar de ser liberais ou socialistas, a depender da escolha soberana do povo. Antes disso, precisamos superar o subdesenvolvimento.
Sobre os aspectos jurídicos do golpe paraguaio, estamos assistindo agora, mais uma vez, o espetáculo das máscaras em queda. Todos aqueles furiosos defensores da democracia, que passaram os últimos anos chamando presidentes eleitos de ditadores, agora se apressam em chamar um político sem voto, alçado ao poder através de uma tramóia parlamentar, de “presidente”.
Em sua coluna de ontem, Merval Pereira adere alegremente ao golpe. Arnaldo Jabor exala um insuportável máu-hálito golpista em comentário na CBN. O Estadão de hoje também exalta a constitucionalidade do impeachment.
É sempre assim: depor o presidente eleito e mandar o exército recolhê-lo em sua casa e expulsá-lo do país, como fizeram em Honduras, é democrático. Decidir um impeachment de um presidente, sem lhe dar direito a defesa, em 36 horas, é democrático. Mas eleger um presidente, eleger um Congresso, aí é ditadura.
A inversão de valores atingiu o paroxismo na América Latina. Mas uma coisa não mudou. As corporações de mídia continuam, como sempre fizeram, apoiando golpismos. Vale lembrar que todo golpe de Estado se fantasia de constitucional. O golpe de 64 também teve aparência constitucional. Os tanques na rua foram só propaganda. O golpe mesmo veio na forma de articulações políticas, decididas em reuniões entre oficiais militares, governadores, parlamentares e barões da mídia.
O Estadão, por exemplo, tenta legitimar o golpe através do argumento de que não há manifestações gigantescas no país. Ora, se fosse um golpe contra um governante de quem o Estadão gostasse, qualquer aglomeraçãozinha de cinco pessoas numa praça ganharia a primeira página de todos os sócios da mafiosa Sociedade Interamericana de Imprensa, com a manchete: PARAGUAIOS SAEM ÀS RUAS CONTRA GOLPE CONTRA DEMOCRACIA. Como não é o caso, não importa que milhares de paraguaios se manifestem. A mídia os ignorará, assim como tentou fazer a Globo com as Diretas Já.
Também no Brasil não aconteceram, num primeiro momento, grandes manifestações contra o golpe militar, e ele deixou de ser golpe por causa disso? A população reage com perplexidade e inclusive timidez quando toma um susto. Em geral, conjugam-se em favor dos golpistas o temor da população, traumatizada por outras ocasiões em que os mesmos partidos que hoje assumiram o poder no Paraguai protagonizaram genocídios; o monopólio da mídia, em geral consolidado justamente durante períodos de ditadura; a falta de esperança e a resignação de um povo acostumado a ser explorado. Esses fatores, contudo, apenas tornam golpes, brancos ou não, ainda mais perversos.
Interessante ainda notar que a mídia brasileira se revela mais conservadora do que governos de direita, como Colômbia e Chile, cujas chancelarias condenaram o golpe. O que aliás é previsível. A estrutura de nossos meios de comunicação é a herança mais pesada, mais maldita, da ditadura que vivemos. Sua reação ao golpe no Paraguai, por isso mesmo, tem uma positiva consequência didática. Na política, assim como na literatura, a melhor forma de conhecer um personagem, é observar como se porta no dia a dia.
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Análise de um trecho do texto de Fernando Rodrigues. O texto dele está em negrito, o meu em fonte normal.
(…) o medo ingênuo de ser imperialista: não é de hoje (vem desde sempre) um temor pueril de que cole ainda mais no Brasil uma imagem já renitente no Cone Sul: os brasileiros são os imperialistas do subcontinente latino-americano. Ontem (22.jun.2012), após a queda de Lugo, uma observação palaciana foi emblemática: “Não podemos ser imperialistas. Brasília não é Washington”. É verdade.
Rodrigues repete essa afirmação tola em vários pontos do artigo. O Brasil é rico, grande e poderoso em relação a outros países sulamericanos, mas é equivocado equipará-lo aos EUA. O Brasil jamais patrocinou golpes de Estado, nem investe em políticas comerciais explicitamente danosas contra seus vizinhos. Ao contrário, o Brasil vem emprestando grandes somas de dinheiro, via BNDES, a países como Bolívia e Paraguai, para obras de infra-estrutura. Tem recebido críticas da mídia e da oposição por causa disso. O Brasil não faz isso apenas por ser “bonzinho”, mas porque a atual administração entende que é nosso interesse estratégico colaborar para o desenvolvimento econômico da vizinhança.
Mas países de tradição católica e ibérica como o Brasil gostam mesmo de falar as coisas de maneira transversa, ou pela metade. “Passa lá em casa” é a frase síntese do brasileiro. Quem ouve isso sabe: o sentido é quase sempre o inverso –“não passe lá em casa”. É o “homem cordial” sobre o qual discorreu tão bem Sérgio Buarque de Holanda.
Vira-latice, piorada com interpretação tosca do clássico de Buarque de Holanda.
Ou seja, o governo brasileiro (de Dilma, Lula ou FHC, não importa), quer mandar na América Latina e na África. Mas quer continuar com a imagem de bonzinho na região, sem a pecha de imperialista.
Quem disse que o governo brasileiro quer “mandar” na América Latina e África? Afirmação estapafúrdia.
Países anglo-saxões têm mais tradição de dizer o que pensam, para o bem e para o mal. Quando os EUA consideram que um país vive em democracia, fazem uma afirmação nesse sentido. E o mesmo vale para ditaduras ou democracias postiças.
O Brasil, não. Escuda-se sempre no (bom) princípio da autodeterminação dos povos e na política de não intervenção em assuntos internos de outras nações –embora isso nada tenha a ver com dizer o que se pensa.
Vira-latice novamente. Países “anglo-saxões” são foda. Falam o que pensam. O Brasil, não. Além de vira-latice, é besteira. Os EUA não falam o que pensam. Falam o que lhes dita seu interesse. O Egito era uma ditadura. Os EUA jamais falaram isso. Não porque achassem o país uma maravilhosa democracia, mas porque Mubarak era seu aliado.
O problema é que ambiguidade produz mais ambiguidade. Forma-se um círculo vicioso. No caso do Brasil, como justificar agora que houve um golpe constitucional-congressual no Paraguai se Brasília nada diz sobre a fragilidade da democracia em países como Venezuela, Equador, Bolívia e até Argentina?
Que fragilidade? Se formos considerar crises políticas e divergências ideológicas domésticas como “fragilidade democrática”, o Brasil teria que meter o bedelho no mundo inteiro. Além disso, mesmo admitindo que nossos vizinhos tem “fragilidades democrátcias” porque cargas d’água o Brasil teria que dar pitaco sobre isso?
Para não ser imperialista, o Brasil acaba não sendo nada. Fica com o pior dos mundos.
Besteira. Brasil é modelo de democracia e nossos vizinhos importam nossos industrializados. Tá de bom tamanho.
Até porque, na maioria dos vizinhos latino-americanos a imagem brasileira é péssima e igual há anos: o Brasil é na região o que os Estados Unidos são para o México e parte da América Central.
Falou merda, como já expliquei anteriormente.
A anedota antiga de dois mexicanos sentados numa estrada na fronteira entre o seu país e os EUA logo poderá ser adaptada para Brasil e Paraguai.
É assim:
Mexicano 1: olhe, lá estão Califórnia, Novo México, Texas, Arizona…
Mexicano 2: sim, um dia tudo isso foi nosso, do México. Os gringos nos roubaram tudo.
Mexicano 1: sim, é verdade. E nos roubaram justamente a parte asfaltada.
Tentou ser engraçadinho, mas foi apenas vulgar e preconceituoso. Piadinha tipicamente vira-lata.
(…) Outro aspecto relevante que emerge da atual crise paraguaia é a incapacidade operacional do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
(…) Como é possível o serviço diplomático do maior país latino-americano não suprir sua presidente de informações sobre um iminente golpe de Estado numa nação que faz fronteira com o Brasil?
(…) os diplomatas brasileiros são vendidos por um preço acima do seu valor real. A lenda de que o Ministério das Relações Exteriores é uma reserva de valor e qualidade é só isso mesmo –uma lenda. Há, por óbvio, exceções. Mas são apenas exceções.
Rodrigues capricha na viralatice ao acusar a incompetência da diplomacia brasileira em não saber antes do que acontecia no Paraguai. Ora, nem os paraguaios sabiam. Justamente por isso foi um golpe, porque foi uma coisa articulada em segredo e disparada de surpresa, para não dar tempo de haver qualquer reação. Usar o golpe no Paraguai para vender a teoria de que a diplomacia brasileira é uma porcaria me parece forçar a barra.