Lula e o julgamento da história

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A história pode ser implacável, mas não é inclemente. Quer dizer, o julgamento da posteridade é livre dos pudores e receios que poluem os acontecimentos presentes, por isso é implacável; mas sabe perdoar o erro de poderosos e os excessos das multidões e portanto não é inclemente. Getúlio Vargas cometeu muitos erros, como prender Graciliano Ramos e mandar Olga Prestes, grávida, de volta à Alemanha nazista, onde iria morrer num campo de concentração. Mas a história o perdoou em virtude de suas ações, que marcaram efetivamente não apenas o fim da república velha como se tornaram os fundamentos do Brasil moderno. Hoje pouca gente sabe disso, até porque a imprensa não comenta, mas foi Getúlio quem moralizou a burocracia, com a instituição de concursos e planos de carreira. Afora todas as outras coisas que fez, entre elas dar início à nossa indústria de base e criar as leis trabalhistas.

As multidões também erram, geralmente por causa de suas paixões, excessos, descontroles, como ocorreu na revolução francesa. Os impulsos mais heróicos e mais fundamentais da revolução francesa nasceram do povo. A tomada da Bastilha, símbolo maior da opressão totalitária da monarquia francesa, nasceu de uma ação espontânea. Histórias de solidariedade, bravura, e inteligência fora do comum, são abundantes nas descrições das revoltas populares que obrigaram a Europa a ser mais justa e mais humana com sua população. E igualmente não faltam narrativas de crueldade, linchamentos, traições, estupros em massa, inomináveis covardias, por parte das massas, sobretudo durante as turbulências que sucedem as revoluções.

A memória histórica, todavia, assim como a nossa própria consciência, prefere sempre guardar os momentos bons. E não por um chapa-branquismo inerente à sociedade, mas porque, depurados os fatos e as consequências, a conta dos prós e contras fica muito nítida, e podemos julgar o passado com muito mais imparcialidade do que podiam aqueles que viviam atemorizados pelo ruído das bombas e dos escândalos.

Dito isto, voltemos à polêmica aliança entre o PT e Maluf, que tanta controvérsia gerou nos últimos dois dias. Erundina, depois de ameaçar abandonar o barco, deu entrevistas dizendo que não era de “recuar”, indicando que permanecia vice-candidata de Haddad. Algumas horas mais tarde, porém, mudou de ideia novamente e o presidente do PSB, Eduardo Campos, admitiu que ela não mais faria parte da chapa do PT nas eleições paulistanas.

A candidata foi alçada, naturalmente, à condição de campeã nacional da ética. Os jornais amanheceram tecendo loas a Erundina. Lula, mais uma vez, apanhou feio. Colunas e editoriais capricharam na artilharia contra o ex-presidente.

O PT, por sua vez, passou a sofrer uma espécie de bullying virtual por parte da ultraesquerda, a quem a foto de Maluf com Lula e Haddad serviu maravilhosamente a seu objetivo de pintar o partido como uma legenda conservadora. O PSOL ganha status, sobretudo entre os jovens, toda vez que o PT mergulha no pragmatismo.

Seja como for, Lula conseguiu realizar ao menos um objetivo: rompeu o anonimato de Haddad, e o botou na boca do povo.

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Sua estratégia pode ser avaliada segundo vários parâmetros: partidário, político, ideológico, eleitoral, simbólico, pragmático. Pode ter sido um erro em alguns desses aspectos, e acerto em outro, mas uma avaliação neutra só será possível após a avaliação de seus desdobramentos futuros. Haddad irá ganhar ou perder? Se ganhar, que tipo de governo fará? Fazendo um governo assim, como reagirá a cidade? Quais serão as consequências reais para a sociedade paulistana? Quais os reflexos disso para o Brasil como um todo?

A própria Erundina deixou claro que o problema não foi a aliança com o PP, que afinal é um partido que compõe a base do governo federal há dez anos. O PSB também jamais se caracterizou pelo purismo não-aliancista, tanto que participou dos governos Alckmin e Kassab até poucas semanas atrás. O problema foi a foto.

Erundina, contudo, tornou-se há algum tempo um quadro de “opinião”, com poucas ligações com seu partido. A polêmica em que se meteu lhe trouxe grande projeção midiática, embora seja injusto acusá-la por isso. Ao contrário, a imagem fortalecida de Erundina poderá servir à campanha de Haddad, caso a deputada participe de sua campanha.

O único erro de Erundina, e um erro grave, foi sua lamentável indecisão. Declarou apoio, desistiu, asseverou em seguida que não recuava; e por fim recuou. Ninguém questiona sua integridade, mas não é aconselhável para nenhuma força política depender de um quadro que se move ao sabor das redes sociais. Não que estas não sejam importantes. São sim, claro, mas também são instáveis, e representam ainda um setor minoritário. Pelo que se pode depreender de sua entrevista ao Estadão, ela teria decidido pular fora do barco porque foi “atacada pelas redes sociais”.

No debate suscitado pela foto de Lula-Maluf-Haddad ressurgiram as velhas xaropadas contra a política, contra o aliancismo, contra os partidos, contra o Brasil. E houve confusão novamente com a figura de Lula, sobre quem valem algumas observações.

  • Lula jamais foi um esquerdista tradicional. E por isso até hoje a esquerda tradicional não consegue entender Lula. Ele nasceu em oposição aos conceitos fechados ideológicos. Ascendeu como sindicalista pregando o diálogo com patrões, na tentativa de arrancar deles não a sua cabeça, mas concessões concretas que melhorassem a vida do trabalhador.
  • Lula se opôs a Maluf e a Sarney, por exemplo, quando estes eram seus adversários políticos e tentavam impor suas ideias a ele. A partir do momento em que Lula ganhou a disputa, e estes passaram a apoiar os seus projetos de governo, Lula não mais os considerou como adversários. O ex-presidente sempre foi um pragmático, uma virtude que lhe valeu a admiração de todos os setores sociais, e do mundo inteiro.
  • Mesmo aceitando o apoio de Maluf a seu governo, a Polícia Federal prendeu o deputado. Ou seja, o PP pode até fazer indicações políticas para cargos no governo, como é de praxe num esquema de coalização, mas o monitoramento ético segue com independência. As ações de eventuais aliados de Maluf no governo serão acompanhadas pela CGU, monitoradas pela sociedade através do Portal da Transparência, e julgadas pelo Tribunal de Contas.  Essas instituições se fortaleceram muito nos últimos anos.

Outro ponto que merece consideração remete à uma confusão constante acerca do conceito de aliança política. Marta Suplicy também teve apoio de Maluf nas eleições de 2008. A diferença é que não tirou foto. Mas teve apoio. Também recebeu críticas por isso. Os argumentos usados então, valem hoje: o apoio de Maluf não significa influência nos programas centrais de governo, nem alteração dos eixos políticos da campanha.

O deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, usou o episódio para detratar pesadamente o PT e o ex-presidente Lula. Acusou-os de fazerem de tudo em busca de poder. Acusou Lula em particular de querer derrotar o PSDB, o que para ele seria fruto de um sentimento de vingança.

Entretanto, é preciso lembrar que Jean Wyllys se elegeu com 13 mil votos, enquanto Lula, bem… não é preciso repetir aqui as perfomances eleitorais do ex-presidente.  Lula entendeu há tempos que ao povo não interessam proselitismos ideológicos para agradar acadêmicos de esquerda e militantes virtuais. O povo quer representantes políticos astutos e pragmáticos que derrotem a direita, assumam o poder e lhes melhorem a vida.

Por mais que essa frase soe brutal, me parece uma grande verdade: o povo não é ético, nem ideológico. O povo é pobre, simplesmente. Precisa de emprego, educação, saúde e um ambiente econômico que lhe permita ascender socialmente. O combate à corrupção, por sua vez, se faz através da implantação de ferramentas de transparência pública e o aperfeiçoamento das instituições de controle. Não cabe a um político do campo popular, diante de um pleito difícil, esnobar apoios. Lugar ladrão e corrupto é na cadeia, mas quem tem o dever de fazer isso são as instituições responsáveis. O Brasil já viu que políticos que se arvoram em polícia e juiz, em mosqueteiros da ética, acabam quase sempre se estrepando. Ou então se tornam reféns da mídia, que afinal é quem dá aval ou não para esse tipo de imagem. Erundina sabe disso, tanto que sua primeira exclusiva durante a polêmica envolvendo a aliança entre PT e Maluf, foi para a revista Veja.

Quem escreve a história, como se sabe, são os vencedores. Lula pode ter cometido um erro crasso ao obrigar Haddad a posar para fotos com Maluf, conforme acusam 10 entre 10 colunistas de jornal. Mas se o petista ganhar a eleição, a aposta do ex-presidente terá sido certeira. Quanto à militância de esquerda, seu protesto contra a foto e contra a aliança é natural, coerente e mesmo necessário, porque estabelece um limite político à candidatura Haddad, dando-lhe substância e sentimento. Mas também um tanto de injustiça, açodamento e incompreensão de política eleitoral e das premências sociais do povo.

Eu também gostaria de falar que Lula errou feio e posar de esquerdista paladino de causas sociais. Tenho dificuldade em fazê-lo porque vislumbro a possibilidade, como eu disse no post de ontem, de ter sido um genial factóide político de Lula com vistas à quebrar o anonimato de Haddad. Lula obrigou a mídia a falar de Haddad, que acabou ganhando uma visibilidade imensa. Lula não pensou em si mesmo, em sua vaidade. Sacrificou sua própria imagem em prol de uma aposta arriscada. Em prol de uma vitória política. Jean Wyllys pode estar muito satisfeito com suas prerrogativas de deputado federal, mas há milhões de brasileiros vivendo em grande dificuldade, a qual só pode ser sanada através de políticas públicas, que por sua vez só podem ser alteradas quando se toma o poder.

Conforme se disse tanto por aí, tentando justificar a aliança entre PT e Maluf, Churchill declarou que se aliaria ao demônio para acabar com Hitler. Poderíamos lembrar também de Prestes, e sua emocionante decisão de apoiar Vargas, que havia deportado sua esposa grávida, nas eleições de 1950.  Independente, porém, da presença de Maluf na chapa petista, o certo é que não é só o futuro de São Paulo que está em jogo nas eleições da cidade. Uma derrota do PSDB provocaria uma profunda crise (mais uma) na oposição e poria em risco a reeleição de Alckmin ao governo do Estado em 2014. A derrota do PSDB, tanto na capital, este ano, como no estado, daqui a dois, representaria a derrota de um projeto de Estado baseado no neoliberalismo, na privatização,  no sucateamento dos serviços públicos. Ou seja, do caldeirão de Lula, onde ele mistura catarro de Sarney, lágrimas de Collor e baba de Maluf, dentre outros venenos exóticos, poderão ser retirados muitas feitiçarias políticas contra os inimigos do povo.
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Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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