Matéria no Globo publicada no último dia 8 de junho estampou um manchetão agressivo:
O Estadão, neste domingo, reverbera o ataque platinado, num editorial pesadíssimo, intitulado “As contas da UNE”.
O editorial do Estadão encerra assim:
No passado, a UNE lutou efetivamente, tanto contra a ditadura de Getúlio Vargas quanto contra a ditadura dos militares. Hoje, a UNE é um reduto do PC do B – partido que se destacou no escândalo dos repasses irregulares de recursos públicos a organizações não governamentais fantasmas, denunciado no ano passado. Além de viver de regalias do governo e do monopólio na expedição de carteiras estudantis, a UNE é manipulada por estudantes profissionais que fazem do lazer e da bajulação sua principais “especializações”.
É por isso que as “tomadas de posição” da UNE já não valem o papel em que são escritas.
A grande mídia vem atacando a UNE de maneira recorrente há alguns anos, desde que entendeu que a entidade se posicionou, de maneira decidida, ao lado de Lula na complexa guerra de comunicação que a mídia empreende contra o “lulopetismo”.
A UNE já havia respondido à matéria do Globo com uma nota bastante politizada, em que parece assimilar bem o tipo de jogo que a mídia vem fazendo.
Complicando ainda mais a coisa, algumas figuras importantes do campo progressista, como Paulo Henrique Amorim, responsável pelo blog Conversa Afiada, e o próprio José Dirceu, pediram a UNE que se mobilize contra pressões da mídia no julgamento do mensalão.
A nova direção da entidade e seu presidente Daniel Iliescu vivem agora um de seus momentos mais delicados. É óbvio que a UNE teria enorme dificuldade para organizar uma manifestação que pudesse ser interpretada como de apoio aos “mensaleiros”. As principais forças de oposição à UNE no movimento estudantil são legendas ultraesquerda (PSOL e PSTU), extremamente hostis ao PT. E o próprio PCdoB, que comanda a instituição, vive momentos de tensão com o partido de Lula, em virtude das eleições. A prefeitura de Porto Alegre, por exemplo, é motivo de atrito entre os dois partidos, pois os comunistas entendem que os petistas deveriam apoiar a líder nas pesquisas, Manoela D’Ávia, mas estes preferem indicar candidato próprio.
O ataque da mídia neste momento engessa ainda mais a desenvoltura da UNE. Parece haver uma estratégia premeditada para impedir que a entidade se junte aos grupos que defendem um julgamento imparcial, baseado em provas, do mensalão. E talvez o mais importante seja debilitar politicamente a entidade num ano eleitoral, pois ela é vista como aliada dos adversários da mídia.
A favor dos estudantes pesa o aumento da conscientização política de vastos setores da sociedade quanto à partidarização da mídia. O ataque à UNE, por exemplo, traz acusações muito parecidas àquelas que se faz sistematicamente à blogosfera.
O irônico é ver Estadão e Globo acusando a UNE de “chapa-branca”, a mesma acusação que faziam em 1964, quando a UNE apoiava as reformas de base de João Goulart. Por ocasião do incêndio do prédio da UNE, após o golpe, a cobertura do Globo para o episódio foi de comemoração; e os jornalões se aliaram à ditadura na perseguição ao movimento estudantil.
Iliescu é carioca e meu amigo. É um rapaz íntegro e idealista, atento às sutilezas da guerra da comunicação, onde o que está em jogo não são fatos, nem verdades, nem jornalismo, mas símbolos, ideologia, aparência, imagem. A resposta política que deu ao Globo mostra que a entidade decidiu comprar a briga. De fato, a melhor defesa é o ataque. Mas não é fácil produzir estratégias eficazes e inteligentes nesta guerra. O governo federal, e os principais partidos, com todos os recursos que possuem, estão sempre apanhando e sofrendo derrotas da mídia.
(Daniel Iliescu, presidente da UNE)
Entretanto, acusações de improbidade no trato com recursos públicos não devem ser respondidas apenas com ataques à mídia, mas sobretudo com medidas de ampliação da transparência e apoio às investigações. Deve-se usar o sensacionalismo tendencioso da mídia em prol do necessário combate à corrupção e incentivar o trabalho do Ministério Público e da imprensa. Essa é, a meu ver, a grande lição de Dilma Rousseff. A presidente perdeu vários ministros, mas ganhou o respeito da sociedade, incorporando à sua popularidade inclusive setores dentro da esfera de influência dos jornalões. Por quê? Porque Dilma tem usado o ímpeto oposicionista da mídia a seu favor, canalizando-o para um esforço efetivo de moralização do serviço público. Dilma foi extremamente astuta, e astuta num ótimo sentido, ou seja, visando efetivamente promover a ética, e mais tarde usou o capital político acumulado para fazer uma guerra aos juros altos e aos spreads bancários. Lula jamais conseguiria protagonizar a guerra contra os bancos da maneira como Dilma o fez, não porque ele não tivesse apoio popular, mas por falta de condições políticas.
É muito revoltante, por outro lado, ver a manipulação das denúncias, justamente porque é uma estratégia que beneficia os verdadeiros bandidos. Lembro-me do escândalo dos cartões corporativos, em que se tentou criar uma onda indignação popular porque o então ministro do Esporte, Orlando Silva, comprou uma tapioca em Brasília. Uma colunista do Globo trouxe um argumento incrível: de que não importava o valor, e sim o ilícito em si. Com isso, a mídia procura indignar a sociedade por causa de R$ 8 supostamente mal gastos ao invés, por exemplo, dos bilhões desviados no processo da privataria tucana.
No longo prazo, porém, assistimos que a proteção midiática, ao invés de fortalecer a direita, tem lhe atrofiado os músculos. A direita no Brasil, sempre confortável em sua relação com a opinião pública, onde conta com uma blindagem absoluta, infantilizou-se. Seus governantes não são devidamente cobrados e por isso não realizam inovações, e a blindagem lhes tira o ímpeto de cortar na própria carne, única maneira efetiva de combater a corrupção de seus quadros.
O jornalista Paulo Nogueira escreveu há pouco em seu blog um post intitulado Como tirar proveito de nossos inimigos, no qual discorre sobre lições do escritor e filósofo Plutarco que se encaixam perfeitamente neste raciocínio.
Os inimigos, reflete Plutarco, como que nos obrigam a andar pela linha reta, uma vez que seus olhos estão continuamente sobre nós, ávidos por captar nossas faltas e propagandeá-las. Eles exercem uma espécie de censura benigna sobre nós. Impedem-nos de sermos moralmente frouxos. É aí que tiramos proveito deles, segundo Plutarco. “A inveja de nossos inimigos é um contrapeso à nossa negligência”, diz ele. “Além disso, nós nos vingamos utilmente de um inimigo afligindo-o com o nosso aperfeiçoamento moral”.
Historicamente, e hoje mais que nunca, a UNE sempre foi uma entidade alinhada a valores progressistas: reforma agrária, aumento dos recursos para educação e saúde, combate à concentração midiática. Por isso é tão demonizada pela oposição conservadora, cujos principais representantes hoje encarnam-se na mídia corporativa. É uma instituição humana, sujeita a falhas humanas, mas tem um patrimônio moral e uma importância política sólidos o suficiente para suportar os bombardeios da mídia, ainda mais vindo dos mesmos grupos que a perseguiram nos anos 60, os mesmos que apoiaram o golpe de Estado, os mesmos que incentivaram a depredação de sua sede, o exílio de seus líderes e a sua virtual extinção durante o regime autoritário. Aquele mesmo conservadorismo por trás do golpe de 64, se volta hoje contra a entidade. É um ataque perigoso, porque não se baseia apenas em posicionamento político, mas manipula denúncias concretas (mas não condenações!) de um procurador do Ministério Público.
Quanto mais difícil a guerra, contudo, mais elevado o valor da vitória. Os ataques da mídia serviram ao menos para tirar a UNE da zona do conforto. A blogosfera só tem a dizer uma coisa: bem vinda às trincheiras!