Além da propaganda dominante
Por Paulo Moreira Leite, na Istoé.
Não gosto de chavões mas às vezes não dá para escapar. Há momentos em que a mentira dominante é a ideologia da propaganda dominante. É assim quando falamos sobre a Comissão da Verdade.
O país passou a ditadura sob censura, contando histórias, mentiras e falsidades que o regime militar deixava publicar. O resultado está aí, décadas depois.
As pessoas – aquelas de boa fé – que falam que também deveríamos esclarecer a violência de quem fazia oposição ao regime querem mostrar-se como cidadãos de boa vontade, cordatos, preocupados com o futuro.
Não são pessoas com ideias extremadas e estão convencidas de que numa sociedade democrática deve haver lugar para conservadores e progressistas, para direita e esquerda e assim por diante. Concordo com isso.
Mas é preciso ver a realidade. Não pode haver luta ideológica em relação ao passado.
Basta entrar nos arquivos do Supremo Tribunal Militar para verificar que nenhum caso de ação violenta da oposição deixou de ser apurado e investigado na época. Nada escapou a um regime de força, que mantinha um aparato imenso, treinado com especialistas internacionais e equipado para perseguir seus inimigos de forma implacável, com violência e sem restrições para usar métodos ilegais de captura e interrogatório de presos.
Quem for atrás, por exemplo, do seqüestro do embaixador Charles Elbrick, o primeiro caso no gênero, irá descobrir o seguinte.
O chefe da operação, que era o operário Virgílio Gomes da Silva, foi morto pela tortura no DOI CODI de São Paulo. Joaquim Câmara Ferreira, que era o principal dirigente da operação, também foi morto em circunstâncias idênticas. Manoel Cyrilo, que participou diretamente da captura do embaixador, foi preso, torturado e, passou anos na prisão. Só foi solto depois da anistia, quando conseguiu provar que era capaz de ter um emprego.
Carlos Marighella, que era o principal dirigente da ALN, mas nem participou pessoalmente da operação e há dúvidas até de que a tenha apoiado, foi executado meses depois.
Fernando Gabeira, que esqueceu um paletó no cativeiro que serviu de primeira pista para se chegar ao grupo de seqüestradores, foi preso e torturado.
O empresário Rubens Paiva foi preso, torturado e morto porque que recebeu uma carta de uma pessoa que vivia no Chile e tinha uma ligação com um dos participantes do seqüestro. Imaginaram que ele pudesse estar envolvido e foi assassinado. Rubens Paiva era deputado pelo PTB, foi cassado em 64. Formado em engenharia pelo Mackenzie, era pai de cinco filhos.
O seqüestro do embaixador virou livro de memórias e filme, O que é Isso companheiro? O massacre de Rubens Paiva inspirou um belo livro, Segredo de Estado.
Mas até hoje não sabemos sequer o que aconteceu com Rubens Paiva. Numa ação vergonhosa, para enganar a opinião pública, o regime chegou a informar oficialmente aos jornais que ele havia sido resgatado por uma organização de esquerda e fugido. A mentira foi manchete.
Também não sabemos quem assassinou Virgílio, nem Joaquim Câmara Ferreira.
Ao contrário dos militantes de oposição, que foram presos e não tiveram direito a um julgamento de nenhum tipo, e podiam considerar-se felizes quando eram encaminhados com vida a um tribunal, para uma sentença de cartas marcadas, os responsáveis por suas mortes não foram incomodados desde então. Seguiram na carreira profissional e até foram promovidos.
Diante de tudo isso, eu acho que é o caso de fazer algumas perguntas simples: o que aconteceu? Quem deu as ordens? Quem achou que deveria cumpri-las? Por que? Quem escondeu os corpos dos desaparecidos? Quando? De que forma?
Não é revanchismo. Não tivemos uma guerra civil. Tivemos um massacre. Não deixaram o outro lado vivo para contar a história.
Não estamos falando de cidadãos que agiram por sua conta e arcaram com o peso de suas opções políticas. Estamos falando de agentes do Estado, que fizeram carreira no serviço público, obedeciam a uma cadeia de comando, davam e cumpriam ordens.
É por isso que essa história deve ser contada. É uma questão de respeito.