(Michelagelo, Juízo Final, Capela Sistina, Vaticano. Detalhe da obra)
Analisando a repercussão do discurso de Dilma Rousseff na cerimônia de instalação da Comissão da Verdade, fiquei pensando neste imprevisível oscilar de triunfos e derrotas que caracteriza a história dos povos, dos indivíduos, do mundo inteiro. Num dia, vemos uma garota de vinte anos pendurada num pau de arara, nua, vulnerável à sevícia dos demônios produzidos pelo autoritarismo. Naquele momento, ela não é nada. Ninguém a conhece, afora meia dúzia de amigos e familiares. É uma mulher anônima, enfraquecida pelo espancamento, aterrorizada pela perspectiva de novas torturas, perplexa diante da proximidade de uma morte precoce, em mãos de adversários indignos, antes da realização de seus mais modestos sonhos.
Aliás, acho que é isso o que mais aterroriza um jovem quando pensa na morte: a não realização de nenhum de seus sonhos.
Mais tarde, a vida se encarregará de aniquilar boa parte de suas utopias, tornar-se-á um adulto talvez cético, cínico, vergado ao peso do trabalho consumidor que a necessidade lhe impõe. Poucos realizam seus sonhos. E, no entanto, mesmo afundados numa vida frustrada, numa existência dura, triste e trabalhosa, seus olhos ainda são capazes de brilhar. O homem, a mulher, não perdem a sensibilidade. Emocionam-se ao assistir um filme, ao ouvir uma música, ao ler um livro, um post, um discurso… A própria angústia acumulada em sua alma converte-se numa espécie de uísque envelhecido, que lhe permite fruir melhor, e de maneira mais profunda, o que Drummond chamava de “sentimento do mundo”.
Afinal, o que é perder, o que é ganhar?
A jovem torturada numa masmorra sinistra de Belo Horizonte deve ter pensado que era seu fim. Imagino que o pior momento, todavia, adveio após sua liberdade, quando assiste a ditadura espreguiçar-se com a segurança de quem se sente na manhã de seu poder. Dilma volta para casa de seus familiares, assim como outros jovens que tiveram a sorte de saírem vivos da cadeia, com o espírito alquebrado, um travo amargo na boca, uma dor na alma muito superior à que sentia em seu corpo machucado.
A brutalidade vencera. Toda aquela ladainha acerca de revoluções, anseios de liberdade, grandeza espiritual do povo, havia escorrido pelo ralo da história. Dilma voltará a estudar e tentará se tornar uma pacata funcionária.
No entanto, a história é mesmo uma caixinha de surpresas.
Ou então interpretamos errado. Aquela prisioneira não experimentava nenhuma derrota. Ao mesmo tempo em que era torturada, seu espírito se fortalecia na mesma proporção que seu adversário se debilitava. Contudo, de que adversário falamos? Os militares? As classes dominantes? Ideias?
Os filósofos, apesar de empreenderem esforços genuinamente heróicos para devassarem um pouco o mistério que nos cerca, ainda não descobriram nada. Tanto é que hoje a filosofia se tornou uma espécie de estética para malucos. A filosofia, de tanto se perder na escuridão do universo, tornou-se delirante, revoltada, esquizofrênica. Passou a renegar a si mesma, atacar a linguagem, as certezas, o conceito de verdade, e a frequentar o bas fond das artes malditas.
Nada mais concreto, porém, do que a dor. É a partir do conceito de dor, fome, desespero, que aquela insegurança ontológica, algo ridícula, de que o mundo não existe, ou o homem não existe, desaparece. A dor impulsiona o pensamento em direção à luz. O ser precisa sobreviver, trabalhar, crescer. O homem existe, não porque pensa, mas porque sente fome.
A máxima do velho Espinoza, aquele modesto oculista que passou a vida num apartamento de cômodo e meio, ainda brilha como um farol para os navegantes perdidos. O ser almeja permanecer em si mesmo, perseverar. Nossa maior ambição, portanto, nada mais é do que sermos o que nós essencialmente somos, em plenitude.
Claro, nem todos nos tornamos presidentes da república, ganhadores do prêmio nobel, revolucionários da ciência, da tecnologia, ou da política. Chegamos a 7 bilhões de almas, em breve seremos 8,9,10 bilhões. O espaço para gênios se afunila. Em breve, viveremos uma era em que os grandes salvadores da humanidade serão pacatos e medíocres secretários da ONU. Os ganhadores do prêmio Nobel auferem um bem vindo milhão de dólares, mas não são mais lidos nem entre os literatos. Eu não os leio. Ainda tenho tantos clássicos na estante e a vida é tão curta!
Num dia, a garota sonhadora e corajosa é uma presidiária anônima, com a vida por um fio; no outro, presidente da república cuja prioridade não é se vingar de seus inimigos, mas extinguir a miséria e desenvolver nossa democracia. Seus desafios são descomunais, e certamente ela enfrentará obstáculos a cada segundo, inclusive em si mesma. Cometerá erros. Mas também há cascas de banana no caminho de seus adversários. Aliás, quem são mesmos seus adversários? A mídia? A classe dominante? Ideias?
A política é um exercício dialético terrível. Um jogo de vida ou morte, com dilemas profundos surgindo a cada instante. O preço do poder é o risco inerente ao enfrentamento desses dilemas. Lembro-me de um deputado que se envolveu numa dessas brigas com a mídia, a qual levantou que ele tinha um processo correndo no Supremo Tribunal Federal. O político informou ao entrevistador que o processo fora instalado porque ele contratara em regime de urgência, quando prefeito de sua cidade, dois ou três médicos para um hospital local. O correto seria anunciar um novo concurso, mas o processo levaria meses, talvez anos, para ser concluído, e milhares de pessoas dependiam daqueles médicos. Ele agiu bem?
Nesse complicado jogo de dialéticas esmaecem inclusive as contradições ideológicas. Há momentos que um recuo conservador tem consequências progressistas; há outros em que um avanço ousadamente progressista se faz imperativo, inclusive para “manter as coisas como estão”. A fórmula de Lampedusa funciona também pelo avesso.
É por isso que, no vai e vem das ideologias, estratégias, dilemas morais, eu adotei uma fórmula simples para avaliar a justiça da ação política: análise objetiva dos dados sociais. Os índices de emprego, prosperidade, educação, saúde, saneamento e qualidade de vida falam mais alto do que qualquer proselitismo partidário. Afora isso, avaliemos a transparência pública do Estado, a melhor arma para combater a corrupção; e a diplomacia, através da qual checamos o grau de comprometimento dos governantes com a paz mundial.
A jovem Dilma venceu, sem dúvida, em todos os sentidos. E ainda está vencendo, a si mesma e a seus adversários. Os protestos do blogueiro da Veja, por exemplo, semelham a uivos esganiçados de um vira-lata que se perdeu do dono. Naquele que, segundo suas próprias palavras, considera seu melhor texto, perde parágrafos inteiros para dizer que a presidenta deveria ter usado “mas” em vez de “e” numa frase. Há derrotas físicas que ocultam grandes vitórias do espírito. Há derrotas morais, contudo, que correspondem ao melancólico ruído de um caixão que se fecha.
Quem eram os reais adversários de Dilma Rousseff quando jovem guerrilheira? Seria temerária ingenuidade pensar que eles não mais existem. Quanto maior a luz, maior a escuridão do outro lado. Sempre haverá oposição no Brasil. Ela pode se esconder, fugir do enfrentamento, ocultar-se sob o manto da sociedade civil. Refiro-me à Dilma enquanto símbolo humano da luta pela justiça social e democracia, não enquanto carne exposta erros e vicissitudes. A consolidação de seu poder como chefe de Estado significa a própria consolidação da democracia. Não precisamos mais de gênios intuitivos como Lula para darmos continuidade ao longo processo que o Brasil precisa atravessar para assegurar melhores condições a seus filhos. Uma mulher sem experiência eleitoral, sem carisma oratório, porém competente e séria pode fazer um governo ainda melhor que seu antecessor.
A delicadeza com que a presidenta evita aprofundar as fraturas políticas e ideológicas que ainda caracterizam a sociedade brasileira revelam uma estadista refinada e astuta. Afinal, por mais que nossa imprensa corporativa tenha um histórico golpista, com recaídas obscurantistas até hoje, o país precisa dela, assim como precisa dos empresários, dos fazendeiros, de todo o setor que domina financeiramente o Brasil. A presidente compreende que deve ser uma juiz relativamente imparcial do pacto político entre as diferentes classes que se acotovelam em busca do sol. Ser imparcial, contudo, não quer dizer neutro, mas ajudar o lado mais fraco a erguer a cabeça e continuar lutando. O poder dos trabalhadores, por sua vez, depende de sua organização, não só em termos físicos, materiais, como também da construção de ideias fortes, arejadas, modernas, que os permitam prosseguir em sua interminável guerra em prol de uma utopia humanista. É uma construção extremamente complexa, porque depende do trabalho de intelectuais cujo entusiasmo pela causa humanista perde força na medida em que ganham prestígio junto ao donos da mídia e do capital.
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Com a inauguração dos trabalhos da Comissão da Verdade e o lançamento oficial da Lei de Acesso à Informação, o Brasil emergiu, nesta quinta-feira, mais transparente, mais seguro de si, mais convicto de seu destino como democracia.
No Congresso, os parlamentares quebram a cabeça para levar adiante uma CPI que sirva, efetivamente, para combater a corrupção, e não paralisar o país numa briga de vida e morte entre governo e mídia, visto que, mais que nunca, está claro quem é a oposição.
A decisão de não convocar os governadores, nem o repórter nem o dono da Veja, representa todavia um lamentável recuo político, uma confissão melancólica de covardia, que poderia ser em parte compensada se houvesse segurança de que o procurador-geral se empenhará em investigar o governador de Goiás, Marconi Perillo, e os desmandos da revista Veja. Infelizmente, não há esta segurança. O que nos conforta é a esperança de que a coragem que falta aos políticos, não faltará ao povo, e as próximas eleições poderão trazer surpresas bem agradáveis aos que acompanham a política tupi.
Mas ainda há tempo: conforme os debates avançarem, a CPI poderá chamar governadores e jornalistas envolvidos com o esquema Cachoeira.
Quanto aos desvios criminosos da mídia, a blogosfera continuará na lide, acompanhada do bom senso, intrepidez e humor do povo brasileiro. Esta é uma luta de ganha-ganha, porque mesmo se perdemos uma batalha, seremos ainda vencedores em espírito; já quando eles perderem, ouvir-se-á apenas o som abafado da terra caindo sobre um túmulo.