(Ilustração capa: Otto Dix.)
O Ministério Público, assim como o Judiciário, talvez por não passarem por nenhum tipo de sufrágio, são instituições onde ainda vigora um forte espírito aristocrático. Há um lado positivo nisso: seus membros são orgulhosos, alguns denotam grande coragem pessoal, e a corrupção no MP é algo bem mais raro do que em outras repartições. Valores genuinamente patrícios.
Exemplo: todo esse imbróglio envolvendo as desculpas do casal Gurgel pela decisão de engavetar a operação Las Vegas trouxe à tôna a informação de que a operação Monte Carlo, que prendeu e desmascarou muita gente graúda, nasceu da iniciativa de três promotores da cidade de Valparaíso, Goiás. Parabenizemos, portanto, a intrepidez desses cavalheiros.
O Ministério Público, enquanto instituição, deve ser parabenizado pela operação Monte Carlo. O Judiciário também, que autorizou escutas do esquema Cachoeira.
Enfim, o desbaratamento do esquema Cachoeira só foi possível através da junção de coragem individual de promotores, competência dos investigadores da PF, e a relação de confiança entre diversas instituições.
Da mesma forma, a CPI em andamento no Congresso só apresentará resultados satisfatórios se houver coragem individual dos parlamentares, competência técnica e uma parceria harmônica entre Congresso, Judiciário, PF, e MP.
Mas há o lado negativo desse aristocratismo no MP: a vaidade de seus membros, e sua vulnerabilidade intelectual à mídia. Como temos uma imprensa extremamente politizada, cujas ideias contaminam profundamente setores da classe média “ilustrada”, os membros do MP não ficam imunes a essa atmosfera. Eles recebem em cheio toda carga política, ideológica, partidária disparada diariamente pelos jornalões. Numa sociedade ainda profundamente dividida socialmente como a brasileira, ser vulnerável à mídia significa pactuar, ainda que inconscientemente, com o atraso e a injustiça.
Um procurador como Gurgel, assim como seu antecessor Antônio Fernando de Souza, são aristocráticos demais para lerem blogs, e quem só lê a mídia velha, se não possuir um filtro excepcional na cachola, acaba contaminado pelas paixões políticas que por ali trafegam – e que correm sempre para um só lado, o leste ideológico.
É assim que Gurgel só abre processos contra políticos após alguma repercussão midiática, e seleciona suas prioridades segundo uma escala ditada pelos jornalões.
Essa é a explicação, a meu ver, mais generosa que se pode conceder ao fato de Gurgel ter engavetado a operação Las Vegas, onde havia fortes indícios do envolvimento do senador Demóstenes Torres com o crime organizado.
Se Demóstenes fosse um senador petista, Gurgel teria engavetado? Provavelmente não. Como o suspeito era um senador da oposição, um “mosqueteiro da ética”, Gurgel e sua esposa protegeram-no. Afinal, coitado do DEM. Se Demóstenes sofresse qualquer arranhão em sua imagem àquela época, isto prejudicaria a imagem de toda oposição, criando um fato político de grande peso nas eleições de 2010. A proteção de Gurgel, porém, não adiantou muito. Meses depois, o escândalo do governo Arruda representaria um golpe profundo na imagem dos Democratas.
Não se sabe o que aconteceria se as relações de Demóstenes com Carlinhos Cachoeira fossem reveladas ainda em 2009. De certo temos apenas que a decisão de engavetar o inquérito obrigou a Polícia Federal a interromper totalmente a operação, e permitiu que o esquema Cachoeira prosseguisse contaminando o Estado.
A operação Monte Carlo foi iniciada apenas um ano mais tarde, e não por iniciativa de Gurgel.
Por outro lado, entendo que há uma preocupação, por parte do procurador-geral, de não ser jamais tendencioso em favor do Executivo, porque isso acarretaria a criação de um conluio de poderes, de caráter perigosamente antidemocrático. O procurador é sempre mais duro com petistas, porque o governo é do PT. É um anseio, portanto, essencialmente democrático, de valorizar a oposição, mesmo que minoritária, ajudando no contrapeso entre as forças dominantes. Isso é saudável, porque de fato é muito pior ver um esquema corrupto infiltrado no governo federal, cujo poder é enorme e concentrado, do que em setores dispersos da oposição. Essa é a razão pela qual o mensalão causou tanto susto ao país.
Um procurador que toma decisões que prejudicam politicamente o governo é considerado imparcial, é um bravo, é um forte. Essa independência recebe merecidos elogios corporativos internos, pelas razões mencionadas; e na mídia, porque esta tem um perfil oposicionista.
Entretanto, como tudo na vida, é preciso equilíbrio. O equilíbrio é a chave para se entender o conceito de justiça. Se eu aplico um corretivo equilibrado em meu filho, sou um pai severo, mas justo e presente; se exagero, me torno violento e injusto; se pego leve demais, sou permissivo e fraco.
Se o procurador pega leve demais com a oposição, engavetando uma investigação que apontava ligações de um senador com o crime organizado, está sendo, com certeza, excessivamente permissivo. Ou mesmo incompetente. Rompeu-se o equilíbrio.
Daí o medo, instintivo, que alguns setores sociais alimentavam de um retorno da direita ao poder, porque assistiríamos a junção de um Executivo conservador a instâncias também conservadoras, por razões de classe, formação, etc, configurando uma espécie de cartel ideológico com força para praticar toda espécie de golpes contra o interesse nacional. Quando governo, MP e mídia se unem no mesmo barco das ideias, então temos uma situação de extrema permissividade. Só isso explica a desfaçatez com que o governo FHC, por exemplo, levou adiante o processo de privatização. Não me refiro à privatização em si, que é um procedimento normal em qualquer governo, mas à maneira específica como foi conduzida no Brasil, com favorecimentos amigos, dinheiro fácil no BNDES e fartas denúncias de corrupção e remessas ilegais de recursos ao exterior. Só isso explica a facilidade com que o então presidente da república mudou as regras eleitorais para reeleger a si mesmo, praticando um chavismo muito pior que o chavismo original, visto que este, ao menos, sempre realizou consultas populares para fazer mudanças deste tipo.
Gurgel tenta se amparar numa explicação casuística. Se tivesse aberto um inquérito contra Demóstenes àquela época, diz ele, não haveria operação Monte Carlo, porque o Clube Nextel reveria seus procedimentos de segurança.
Ele agiu como o policial que não autoriza a investigação sobre um assaltante de banco, porque sabe que o bandido vai cometer um homicídio no ano seguinte.
Gurgel não sabia que haveria outra investigação sobre Demóstenes, e a decisão tomada por ele e sua esposa, a sub-procuradora Claudia Sampaio, apenas atrasou o trabalho da polícia federal. A PF poderia ter muito bem dado continuidade à operação Las Vegas e pegar Demóstenes, sem nem precisar iniciar a Monte Carlo.
Enfim, o procurador-geral deve explicações convincentes não aos parlamentares, não à imprensa, mas ao país, à sociedade brasileira, que lhe paga o salário. Não tendo explicações, cabe manter um silêncio humilde, respeitoso, ao invés de incendiar o debate com declarações políticas e tendenciosas.
Os homens de toga devem entender que o julgamento da história é o único que realmente importa para um cidadão comprometido com os valores democráticos e republicanos que constituem os fundamentos morais do país. Não adianta nada ficar bem na mídia e mal junto ao povo brasileiro.