Uma coisa que os últimos anos têm ensinado à sociedade brasileira é que, numa democracia, não existem cidadãos acima da lei. Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça, surpreendeu o país pela dureza com a qual denunciou “os bandidos de toga”, referindo-se à corrupção no judiciário. Bem, procuradores também usam toga. Operações da Polícia Federal vem desbaratando quadrilhas onde operavam as mais graduadas autoridades do Estado: desembargadores, promotores, juízes, governadores, senadores, delegados, deputados. Todos aqueles cargos pomposos a quem o imaginário popular atribuía quase mítica invulnerabilidade, apareceram na imprensa como acusados por graves crimes de corrupção, foram presos, condenados ou estão vias de sê-lo.
A nossa Justiça, de fato, ainda é muito lenta e tolerante quando se trata de manter criminosos do colarinho branco atrás das grades, mas neste primeiro momento de nossa história é importante comemorarmos o fato de que eles, ao menos, estão sendo devidamente processados, seus bens têm sido bloqueados, perdem suas funções públicas e, entre os políticos, ficam desmoralizados perante seus eleitores.
Aliás, uma das consequências positivas da CPI do Cachoeira poderia ser o encaminhamento de mudanças na lei para endurecer as penas de condenados por corrupção, em especial políticos com mandato popular. Por trás do esquema Cachoeira, onde o tráfico de influência figurava como seu maior capital, há um perigosíssimo atentado à democracia.
Digo isso para avaliar a polêmica envolvendo o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, acusado de engavetar, juntamente com sua esposa (sub-procuradora da República), o relatório da Operação Las Vegas, onde apareciam vários indícios importantes de envolvimento do senador Demóstenes Torres com o crime organizado. Eu escrevi aqui que era importante ouvir Gurgel, para que ele pudesse se explicar, visto que a sua argumentação, de que preferiu esperar a conclusão da operação Monte Carlo, desencadeada em seguida, tinha uma lógica, embora eu estranhasse o poder visionário do procurador, de saber, de antemão, que haveriam novas provas contra o senador antes mesmo de iniciada a investigação.
A sua reação descontrolada, no entanto, depõe contra ele. Gurgel jogou pra platéia, ou melhor, pra mídia, ao atribuir a “mensaleiros e protetores de mensaleiros” o esforço para trazê-lo à CPI. Gurgel agiu como o bate-carteira barato que grita “pega ladrão” no meio da muvuca justamente para poder fugir de fininho.
Ora, se Gurgel não tem culpa no cartório, que se defenda com galhardia e firmeza, mas sem perder a postura de imparcialidade que ele tem obrigação de manter. Entrar no jogo político-partidário, como ele fez, constitui uma grave infração ética de sua função. A CPI do Cachoeira produziu tensionamento; os ânimos estão exaltados; Gurgel demonstra portanto uma notável incompetência para os aspectos políticos de seu cargo ao não perceber isso e contribuir para botar fogo na fogueira. Sua estratégia, além disso, é contraproducente, gera ainda mais desconfiança sobre sua idoneidade.
Gurgel deveria entender que é perfeitamente compreensível, dentro da lógica dos trabalhos da CPI, que parlamentares quisessem ouvi-lo, após a acusação, por parte do delegado que chefiou a operação Las Vegas, de que engavetou o inquérito que lhe foi enviado. Ele pode até negar-se a ir, ou negar-se a falar, alegando restrições de ordem constitucional. Quando ele falou que não podia depor, porque isso infringiria o estatuto do MP, eu compreendi perfeitamente. Mas ele não tem o direito de produzir factóides partidários que apenas desviam, como desviaram, o foco da CPI.
Seu proselitismo oportunista, além disso, é mentiroso, visto que até parlamentares da oposição, críticos ferozes do PT, como o Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) e Onyx Lorenzoni (DEM-RS) passaram a defender sua convocação. Não são apenas os “protetores de mensaleiros”.
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A CPI do Cachoeira se tornou uma espécie de Caixa de Pandora, de onde saem todos os males que já acossaram a política brasileira. É um desafio acompanhar a produção industrial de novas denúncias verdadeiras, falsas, factóides, manipulações, contra-informação, cortinas de fumaça, distorções, mentiras, revelações bombásticas. A imprensa “tradicional” não é mais um filtro confiável. Ao contrário, contribui para alimentar a sensação de entropia.
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A defesa da Veja praticada pelos jornalões se dá porque todos estão envolvidos com o esquema Cachoeira, visto que todos foram pautados por reportagens publicadas na revista cuja fonte era a máfia goiana. Nem todos são criminosos, mas ajudaram a alimentar um esquema criminoso.
Pensando bem, a estratégia de Gurgel é a mesma usada ao longo dos anos por Carlinhos Cachoeira. Quer usar a mídia? Use a palavra mensalão, ou mensaleiro, faça qualquer acusação às forças governistas, mesmo que ancorada em escutas ilegais, denúncias falsas e ilações absurdas: você terá a mídia a seus pés, fotos na capa, será louvado em editoriais, e a revista Veja o transformará em paladino da ética (como fez com Demóstenes).
Como sempre haverá denúncias e casos de corrupção num aparelho estatal enorme como é o da União (enorme não por se inchado, mas porque precisa administrar um país de 8 milhões de quilômetros quadrados e 200 milhões de habitantes), basta montar – como fez Cachoeira – um aparelho de investigação paralela, que pratica grampo clandestino e manipula jornalistas e prepara armadilhas para funcionários públicos, para ter a mídia na mão. É como se um traficante da Rocinha montasse um esquema para denunciar, sistematicamente, a venda de drogas no morro do Vidigal. A polícia apareceria todo dia na mídia prendendo um bandido diferente, posando de herói, mas na verdade estaria a serviço de uma gangue rival, que cresceria na esteira do enfraquecimento do adversário.
O problema maior da máfia Cachoeira é justamente esse envolvimento com a alta política e com a mídia. Um grupo de bandidos atuava em favor da oposição, com auxílio consciente e despudorado da revista Veja. Essas alianças entre corrupção, política e mídia, na verdade, é coisa antiga. Nos EUA, há toda uma literatura sobre o tema. Eu mesmo, por coincidência, estou lendo Washington, de Gore Vidal, cujo personagem principal é um senador acossado por um mafioso, que por sua vez é aliado de um poderoso dono de jornais.
Tão ou mais importante do que responsabilizar criminalmente a revista Veja por associar-se ao crime organizado, é desvendar a trama de interesses que liga empresas de mídia, partidos políticos e uma máfia especializada em desviar dinheiro público. É justamente isso o que está acontecendo. Estamos sendo esclarecidos. A trama está sendo dia a dia desvendada. Cachoeira grampeava políticos ou funcionários públicos, às vezes até lhes preparava armadilhas, e depois chantageava autoridades exigindo-lhes que aceitassem pagar adicionais milionários de obras. Devia fazer isso também com juízes, armando flagrantes comprometedores, para lhes obrigar a emitir esta ou aquela liminar, como foi o caso da que forçou o governo do Distrito Federal a aceitar a Delta como responsável pelo serviço de lixo na região.