Jornalões em defesa da Veja

(Ilustração capa: Basquiat)

Hoje os três jornalões se uniram para defender a revista Veja dos ataques – justos, necessários, democráticos – que esta tem sofrido na blogosfera por seu envolvimento com o esquema de Carlinhos Cachoeira X Demóstenes Torres. A estratégia é parecida: desqualificar os autores das críticas; distorcer as próprias críticas; fazer acusações absurdas sobre supostos anseios totalitários de amordaçar a “imprensa livre”.

Tentarei responder a cada um.

Dora Kramer, no Estadão, disparou o seguinte:

Roncos da reação. Há duas questões não respondidas pelas tropas de ataque à Veja: as denúncias divulgadas pela revista eram verdadeiras ou falsas? Ajudaram ou prejudicaram na elucidação de casos de corrupção?

Considerando a veracidade e o benefício (abertura de inquéritos, processos e demissões) resultante das reportagens e reveladores do compromisso com os fatos, resta a evidência de inequívoco desconforto com a vigência da liberdade de imprensa no País e o indisfarçável desejo de alguma forma de revogação da regra.

Certamente não se veem assim, mas esses grupos atuam à semelhança de setores conhecidos durante a ditadura como “bolsões radicais” contrários à retomada do Estado de Direito.

Prezada Dora, inúmeras das denúncias da Veja revelaram-se falsas. Era verdade, por exemplo, que Rubnei Quicoli, conseguiu acesso facilitado a algum financiamento do BNDES? Não. A espionagem do hotel Nahum foi um crime? Foi. Houve algum ilícito? Não. Acontece o seguinte: não faltam casos de corrupção no Brasil, e é ótimo que a imprensa os denuncie. Que continue assim. Ocorre que a imprensa, incluindo a Folha, Globo e o Estado, mas especialmente a Veja, pratica uma seletividade descarada, e atuou, sistematicamente, em serviço do esquema Cachoeira. Não só muitas denúncias eram falsas, como elas eram incompletas, porque direcionadas exclusivamente para prejudicar um grupo político. Se a polícia prende um traficante, ótimo. Se prende aquele traficante para beneficiar seu concorrente, aí temos um crime de cumplicidade. É uma coisa que acontece, infelizmente, muito no combate às drogas, e agora vemos que também é prática comum na imprensa.

Quanto ao desconforto com a liberdade de imprensa, admito que ele existe sim, e se não existisse é porque não haveria liberdade de imprensa. O que falamos aqui é, todavia, de uma outra espécie de desconforto, aquele que se manifesta perante os abusos desta liberdade. Abusos que corrompem e desmoralizam esta liberdade. Concordamos que um policial deve ter autoridade para prender bandidos. Mas se abusa desta autoridade, comete um crime. A mesma coisa vale para a imprensa.

A comparação com a situação da ditadura revela bem um pensamento conservador, golpista. As circunstâncias daquela época eram radicalmente distintas. Comparação ridícula, além de amalucada. Quem era contra a “retomada do Estado de Direito” era o jornal para o qual a senhora escreve, visto que o Estadão apoiou o golpe de Estado e foi um dos pilares midiáticos da longa e sanguinária ditadura que vivemos – ou seja, o Estadão foi cúmplice da tortura e assassinato não só de pessoas, como da própria liberdade de imprensa e expressão no Brasil.

Agora analisemos Merval Pereira, em sua coluna de hoje no Globo. Vamos deixar de lado o proselitismo antipetista de Merval, e nos debruçarmos especificamente sobre esse parágrafo, no fim de seu texto:

Por falar nisso, uma pesquisa da Associação de Jornais dos Estados Unidos (NAA, na sigla em inglês) mostrou mais uma vez que os jornais tradicionais são marcas confiáveis para as quais o leitor corre quando algo importante está acontecendo.

Pesquisas das universidades Stanford e Cornell, já mencionadas aqui na coluna, já mostravam que estava errada a tese de que as novas tecnologias, como a internet, os blogs, o Twitter e as redes sociais de comunicação, como o Facebook, seriam elementos de neutralização da grande imprensa.

Ao contrário, a internet seria como a “caixa de ressonância” da grande imprensa, de quem precisa para se suprir de informação e para dar credibilidade às informações.

Os sites e blogs mais acessados tanto nos EUA quanto no Brasil são aqueles que pertencem a companhias jornalísticas tradicionais, devido à credibilidade.

A pesquisa da NAA sobre o uso de multiplataformas mostra que ¾ de todos os usuários da internet têm os jornais como principal fonte de notícias e os leem em várias plataformas.

Infelizmente, tenho de concordar com Merval. Eu já escrevera sobre isso uma vez, num post intitulado “O Leviatã engoliu a internet?” Os grandes meios de comunicação, por terem mais dinheiro, têm avançado sobre a internet livre. É assim nos EUA, onde a blogosfera foi domesticada e industrializada. E vai ser assim no Brasil, a menos que haja a criação de um marco regulatório diferenciado, onde o blogueiro profissional e independente seja valorizado e protegido.

A internet não acaba com a mídia. Ao contrário, fortalece-a. Porque é a grande mídia que tem recursos e prestígio para entrevistar os ganhadores de prêmio Nobel, as lideranças políticas e as celebridades nacionais ou internacionais. E a internet, mesmo que informalmente, acaba sempre se ancorando na grande mídia.

O importante, porém, é que o indíviduo ganhou espaço para se manifestar, e a mídia perdeu o monopólio sobre a opinião pública. Antes da blogosfera, por exemplo, meia dúzia de colunistas se arvoraram como expressão da opinião pública brasileira. Hoje, não são mais. A blogosfera tem mais legitmidade para reinvidicar esse direito porque, como diria Jim Morrison: they got the guns, but… we got the numbers. Eles têm as armas, nós temos o número. Somos muitos. Invadimos as caixas de comentários das páginas de notícias da mídia, seus blogs, e impomos nossas opiniões à força de sermos muitos. A opinião pública hoje passa pela posição da blogosfera, e as pesquisas eleitorais ou de popularidade têm estado do nosso lado.

Outro ponto falho na análise de Merval é a comparação entre a realidade midiática norte-americana e a brasileira. A tal pesquisa (fui lá verificar a entidade e a íntegra do relatório) que ele cita parte de uma entidade que representa mais de 2 mil jornais. A concentração midiática nos EUA é menor, permitindo uma pluralidade ideológica bem mais saudável. E eles possuem uma indústria cultural extremamente pujante e independente, o que também se torna um contraponto importante ao poder da grande mídia.

Mesmo assim, o que Merval aponta como dado positivo, é na verdade um problema que a humanidade tem de combater. Uma das razões que fez a internet se expandir a uma velocidade tão alucinada foi justamente a necessidade de milhões de pessoas se libertarem da opressão midiática. Essa opressão, enquanto uma realidade totalitária, já acabou. Nunca mais a grande mídia será a mesma.

Aliás, acabo de rever a tal pesquisa citada por Merval e descobri o seguinte: a interpretação dos dados é enviesada, pela própria NAA, e por Merval. Confira o quadro:

O NAA fala que a audiência de jornais e revistas (observe que são mais de 2000 jornais, com uma distribuição muito mais equânime que no Brasil) cresceu, mas os dados mensais dizem o contrário. O percentual em junho de 2011 (último mês pesquisado) caiu para 63%, contra  65% em maio.

De qualquer forma, os próprios números mostram que blogs e sites desvinculados da mídia tradicional respondem por 35% da audiência da internet americana. Para mim, isso parece uma excelente notícia. Há alguns anos, tínhamos 0%.

E olha que não falamos das redes sociais, onde seria ridículo falar em domínio da “mídia tradicional”. E é nas redes sociais para onde caminham, com mais velocidade, os filtros de acesso à internet. Por último, lembremos que o fato do cidadão acessar um blog ou site da mídia tradicional não significa que ele vá concordar com que leu e, ainda mais importante, votar no candidato que aquele espaço, de maneira transparente ou secreta, apoia. A grande mídia perdeu poder político, e o mimimi de Merval Pereira é apenas um comprovante.

*

Falta agora analisar a coluna Painel, assinada por Vera Magalhães, na Folha:

O PT decidiu investir todas as fichas em transformar a CPI criada para apurar as relações de Carlinhos Cachoeira com autoridades de várias instâncias numa investigação sobre a imprensa. A estratégia, antes discreta, se intensificou após reunião de petistas ontem.

No depoimento secreto do delegado Raul Alexandre Sousa, que conduziu a Operação Vegas, as perguntas de petistas e aliados se concentraram nas ligações de Cachoeira com jornalistas. Sousa disse que, após longa investigação, a Polícia Federal não verificou nada de impróprio nessas relações nem viu razões de indiciar jornalistas ou investigar órgãos de imprensa.

QG A reunião em que petistas e aliados decidiram concentrar o foco na imprensa foi feita na liderança do PT no Senado. Um senador petista saiu externando o espírito reinante: “Se a mídia quer guerra, vai ter guerra”.

Soldados A tropa de choque anti-imprensa na sessão secreta de ontem foi composta pelos senadores Fernando Collor (PTB-AL) e Humberto Costa (PT-PE) e pelos deputados Luiz Sérgio (PT-RJ), Doutor Rosinha (PT-PR) e Protógenes Queiroz (PC do B-SP).

Assim que pus os olhos no primeiro parágrafo, identifiquei a armadilha. Ora, o delegado entrevistado ontem pela CPI atuou somente na operação Las Vegas. As falcatruas de Poli estão na operação Monte Carlo, posterior. A nota confunde o leitor, portanto, num ponto fundamental.

Outra confusão é chamar o grupo que quer investigar a promiscuidade entre Veja e Carlinhos Cachoeira de “tropa de choque anti-imprensa”. Ora, existem quantos jornalistas no país? Milhares? Dezenas de milhares? Quantos se envolveram com o crime organizado? Poli, felizmente, é uma exceção, embora o seu caso possa servir como referência para muitos casos similares, em todo país. Nos áudios gravados pela PF, ouvimos Cachoeira mencionar, mais de uma vez, a necessidade de ter jornalistas e imprensa sob controle. Ou seja, os membros da CPI que querem investigar os crimes de mídia da revista Veja são uma tropa de choque em defesa da imprensa livre, da imprensa honesta, e contra os órgãos bandidos. É óbvio que um órgão que se utiliza de grampos clandestinos, mesmo que terceirizando este serviço para um esquema mafioso, tem vantagens comerciais sobre seus concorrentes. É por isso que os pessimistas, com alguma razão, acreditam que o mal costuma vencer o bem. Quando não se tem escrúpulos, age-se com muito mais desenvoltura.

Reiterando: investigar as relações da Veja com o esquema Cachoeira é defender a imprensa brasileira. É lutar por sua liberdade, que apenas será uma realidade quando extirparmos as maçãs podres, que contaminam todo o cesto. A história mantém uma coerência comovente. As forças que lutam para investigar setores mafiosos da mídia são as mesmas que, ideologicamente, lutaram pela democracia. Já aqueles que hoje tentam esconder da sociedade os malfeitos da mídia são os mesmos, ideologicamente falando, que apoiaram a ditadura e o consequente aniquilamento, por mais de 20 anos, da liberdade de imprensa no Brasil.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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