A eterna luta

Heráclito de Éfeso, um filósofo pré-socrático, dizia o seguinte:

A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres.

Numa democracia como a do Brasil, a guerra acontece no universo da comunicação e da política. Não é possível fugir dela. De alguma maneira, todos se vêem imersos em seu vórtice barulhento e terrível.

Há um fator que torna a luta política, no Brasil, ainda mais emocionante. Jamais tivemos um Parlamento tão representativo da pluralidade nacional. Há representantes de sindicatos, grandes agricultures, pequenos agricultores, industriais, comerciantes, multinacionais, ambientalistas, igrejas, há os independentes, os midiáticos, os “éticos”, os lobistas. Não falo isso da boca pra fora. Há pesquisas científicas que mostram o avanço qualitativo do Parlamento brasileiro desde a redemocratização.

Além disso, há o sentimento de que as demandas sociais mais importantes estão institucionalmente canalizadas. A miséria absoluta está sendo combatida pelo governo federal. A reforma agrária tem um MST, um dos maiores movimentos da América Latina, a defendê-la e o MST tem vários canais de diálogo com partidos políticos – embora com resultados práticos sempre abaixo das expectativas. Os sindicatos e suas centrais respondem pela maioria das vagas parlamentares dos partidos de esquerda.

Tudo isso gera um ambiente político fortemente institucionalizado, com uma realidade totalmente oposta àquela vista na Espanha, quando milhares de jovens vieram às ruas dizer que não se sentiam mais representados pelos partidos tradicionais.

No Brasil, claro que há multidões que não pensam a mesma coisa, mas nunca houve um parlamento mais representativo da pluralidade nacional, e eleito por um percentual tão grande da população brasileira. Dificilmente se encontrará um país de magnitude similar ao Brasil onde se veja uma participação tão massiva da sociedade nos processos eleitorais.

Em relação à questão ética, acho prudente não emitir nenhum juízo sobre o Congresso, o que seria tolo. Acho uma tremenda bobagem comparar a legislatura de hoje com a do passado em termos éticos. Nesse ponto, vale a pena lembrar que os instrumentos de transparência que temos hoje não existiam no passado recente. Hoje pode-se monitorar em detalhes os gastos do setor público, inclusive a destinação das emendas de cada parlamentar.

As licitações dos governos também estão cada vez mais abertas à consulta pública. Se hoje há tanta roubalheira, imagine-se como era no passado, quando não havia transparência. Aliás, até a licitação, nos termos de hoje, é algo moderno.

O tão famigerado patrimonialismo brasileiro, portanto, assentava-se, mais do que numa tradição cultural, num ambiente jurídico favorável.

Não havia lei contra o nepotismo.

Não havia transparência pública.

O eleitorado correspondia a uma parcela pequena da população total, em virtude dos inúmeros obstáculos à formalização documental do título do eleitor.

Os estremecimentos que temos visto nos últimos anos, travestidos de guerras entre mídia, governo, blogosfera, e envolvendo políticos, empresários, lobistas, promotores, policiais e juízes, formam a pira de fogo onde estão sendo forjados os novos valores da república.

Dessa guerra, como dizia o filósofo, sairão escravos e homens livres.

Os debates em torno da CPI do Cachoeira fazem parte dessa guerra maior, da qual emergirá um país mais esclarecido.

O cidadão comum, por sua vez, se tornou uma vítima das circunstâncias. A mídia corporativa continua jogando uma cortina de fumaça sobre os debates em torno da criação da CPI do Cachoeira. A estratégia é tentar abafar o assunto da seguinte forma:

  1. Falando em mensalão. Diariamente os jornais publicam matérias sobre o maior escândalo da era Lula.
  2. Botando a empresa Delta na linha de frente.
  3. Divulgando mensagens contraditórias sobre a preocupação da presidente, de Lula e do PT. Uma hora eles apóiam, no dia seguinte, querem abafar.

Vamos opinar sobre cada um desses pontos.

1. Sobre o mensalão, houve, talvez, um erro político do presidente do PT ao mencionar o episódio em vídeo no qual pedia apoio à CPI do Cachoeira. Há pontos de contato entre o mensalão e Cachoeira, mas são tênues. Cachoeira foi responsável pelos vídeos que deflagraram aquele grande processo político, que se consagrou pelo bombástico nome de mensalão, mas qualquer outro vídeo clandestino poderia ter efeito igual. Cachoeira riscou um fósforo numa sala cheia de gás inflamável. Mas eu duvido que ele tivesse noção das consequências do que viria acontecer. Possivelmente, Cachoeira e Demóstenes articularam para derrubar Dirceu, alimentando a esperança de “derrubar” o governo Lula, mas o mensalão foi um processo midiático – com base em crimes reais – cujo mecanismo funcionou muito acima da esfera Cachoeira.

Interessa a todos que o mensalão seja julgado logo no Supremo, e que a decisão seja o mais próxima possível de uma decisão justa. Mais importante que a condenação, contudo, é o esclarecimento. Aí é que entra a CPI do Cachoeira. O mensalão caracterizou-se pela aliança entusiástica e guerreira entre mídia e oposição, com ajuda de alguns membros do Ministério Público, na qual entravam em cena arapongas inescrupulosos e grampos clandestinos, operados por mafiosos como Carlinhos Cachoeira e Daniel Dantas, os quais usavam as gravações para chantagear ou destruir figuras políticas que lhes estorvassem o caminho. É por isso que blogueiros acham que a CPI do  Cachoeira pode “melar” o mensalão.

2. A Delta é uma empresa que cresceu no rastro do aumento dos investimentos públicos no país. Ela virou uma espécie de bode expiatório de práticas que acontecem, infelizmente, em todos os estados. Os negócios da Delta não cresceram apenas com o governo federal, nem com o governo fluminense. Só com a prefeitura de São Paulo, por exemplo, os negócios da Delta somaram R$ 329,76 milhões desde 2005, conforme se pode ver em notinha publicada na Folha de hoje (sem nenhum destaque, claro).

Sobre isso, é lamentável que o Jornal Nacional tenha requentado uma denúncia velha, que em verdade não traz nenhuma prova concreta de nada, usando como fonte o jornalista Mino Pedrosa, preposto de Carlinhos Cachoeira. O Tijolaço já escreveu sobre o assunto de maneira satisfatória.

3. Sobre o vai e vem do apoio da base aliada, do PT e do governo à abertura da CPI, conforme ventilado pelo Jornal Nacional, o blog Cidadania lembrou-nos o quão irracional é esta história. O PT é doido? Apoiou CPI e agora recua? Não tem sentido. Por outro lado, acho perfeitamente compreensível que haja cobrança, por parte das principais lideranças partidárias, de uma postura mais prudente. A CPI de fato não pode se tornar uma pantomina sangrenta entre governistas e oposição, nem se transformar num tribunal de exceção com poder de investir contra tudo e todos. É preciso estabelecer um foco específico e ir até o fundo. A partir daí, a investigação naturalmente deve se expandir bastante, causando danos a muita gente e a vários partidos. Mas esta é uma consequência inevitável quando se combate pra valer o câncer da corrupção no meio político. Como disse Walter Pinheiro, “caiu na rede, é peixe!”

*

Hoje os jornais trouxeram péssimas notícias de econonomia. Todos fizeram a mesma coisa, então me limito a analisar o Globo, porque assim analiso automaticamente os outros.

O Globo hoje noticiou que a economia caiu 0,23% em fevereiro. E o emprego formal, por sua vez, declinou 27%.

Publico o infográfico:

Não aconteceu nem uma coisa, nem outra. A economia ficou estável sobre o ano anterior, e o emprego aumentou. Explico, mas antes vamos dar uma outra olhada nos números do Banco Central.

A economia, como se pode ver em qualquer gráfico, tem uma oscilação mais ou menos cíclica, ritmada. Vai bem num bimestre, cai um pouco no outro, volta a crescer em seguida, declina de novo, dispara, desaba. Então a gente precisa ver sempre o quadro maior. Os economistas, do governo e do mercado, em função das altas verificadas em novembro e dezembro, já esperavam um período manso nos primeiros meses deste ano, com leve declínio.

Mesmo assim, no acumulado do ano (1º bimestre), há alta de 0,30% sobre igual período do ano anterior. No acumulado 12 meses, a alta é de 2,05%. Na comparação com o mesmo mês do ano anterior, há estabilidade: uma queda insignificante de 0,07%.  Comparações sobre o mês anterior são boas quando se quer avaliar retomadas de setores específicos, como é o caso da indústria, mas para avaliar a economia como um todo, deve-se ver um quadro mais abrangente, e a melhor comparação é sempre com o ano anterior. A economia brasileira segue firme, com um crescimento lento, mas distribuído de maneira saudável, com taxas mais aceleradas nas regiões menos desenvolvidas e um mercado de trabalho em ebulição.

Quanto ao emprego, o título da matéria é uma verdadeira e revoltante falácia.  O emprego formal não caiu. Ao contrário, foram gerados mais de 381 mil postos de trabalho no primeiro trimestre. Entretanto, conforme a taxa de desemprego cai, os saldos obviamente serão cada vez menores. Menos gente desempregada, menos saldo.  Para cúmulo da mentira, o Globo não deu destaque a um fato realmente notável: mesmo com desemprego tão baixo, o saldo no mês de março foi de 111.746 vagas, acima das 92.675 do mesmo mês de 2011, alta de 21%. Ou seja, o jornal conseguiu transformar uma notícia extraordinariamente boa sobre o mercado de trabalho no mês de março, numa matéria medíocre, com um pessimismo banguela e forçado.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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