Esse artigo do Escobar (publicado ao fim do post) é uma obra-prima de lucidez, informação e literatura política. Ele toca num ponto que tenho observado frequentemente: como os EUA conseguiram produzir, além do aparato de guerra, um sistema de produção cultural ainda mais poderoso, que transforma todos seus danos financeiros e militares em grandes sucessos de entretenimento holliwoodiano. Isso é realmente assustador. Depois de ver dezenas de filmes sobre o Iraque, eu fico cada vez mais impressionado com isso. Sobre o Vietnam, foram centenas, talvez milhares de filmes. Acho que todos os impérios fizeram coisas semelhantes, quer dizer, escreveram a história conforme seus parâmetros, mas só os EUA transformaram isso num de seus principais produtos de exportação. Eles escrevem os roteiros e coletam os direitos autorais, lembra Escobar. Às vezes eu fico sonhando como será o mundo quando os próprios iraquianos, os vietnamitas, os chineses desenvolverem suas técnicas narrativas, e também fizerem seu filmes, contando o seu lado da história. É uma utopia meio boba, porque fazer um filme pop para o mercado internacional requer investimentos de milhões de dólares, não apenas em sua produção e marketing. É preciso construir uma indústria de cinema. Não bastam apenas roteiristas e seus direitos autorais. É preciso formar distribuidoras gigantescas, as famigeradas majors, que dominam até 80% dos mercados domésticos de cinema em muitos países, inclusive na União Européia. Com isso, formam consensos, produzem vilões. Pepe Escobar está do outro lado do balcão, lutando contra esses consensos, mas a indústria cultural é tão poderosa, que poderia até fazer um filme sobre Pepe Escobar (aliás, até faz às vezes), contando sua versão, e mesmo assim continuaria exercendo seu poder de manipulação nas questões geopolíticas mais cruciais.
Ainda assim eu discordo de certo maniqueísmo de Escobar, embora o compreenda como parte de um ceticismo brutal que vemos em todo correspondente de guerra. Analisar o jogo da guerra requer um cinismo extremamente bem articulado, sobretudo para pessoas inteligentes e bem intencionadas como Escobar. É impossível analisar a fundo a brutalidade das guerras sem se tornar cínico, ou cético, ou algo parecido. Os que não são bem intencionados podem se dar ao luxo de escrever asneiras e posarem (hipocritamente) de ingênuos, como fazem os colunistas do New York Times.
Embora eu não seja marxista, eu respeito Marx enquanto cientista social e filósofo, e acho válida a sua tese – que na verdade remete à dialética hegeliana – de que o capitalismo produz a semente que irá destruí-lo, ou renová-lo. Diretores, americanos e europeus, lêem autores como Escobar, e têm feitos filmes que denunciam a guerra, seus horrores e seus interesses escusos. Felizmente, Escobar não é o único a enxergar as injustiças tremendas da guerra, suas fábulas e lucros trilionários.
Como não sou correspondente de guerra (nem quero ser), tenho o privilégio da ingenuidade de acreditar no poder transformador do cinema. No mundo hoje, não há somente “uma audiência virtualmente mundial de preguiçosos, exaustos, atordoados, conduzidos de distração em distração, impotentemente viciados na desprezível atrocidade das guerras pornô.” Há milhões de cidadãos querendo pôr fim a essas farsas, e há muitos diretores e roteiristas trabalhando neste sentido. A guerra cultural é longa, complexa, alternando avanços e recuos, mas no longo prazo ela sempre avança, em última instância salva por um providencial darwinismo inerente à raça humana, que aparece sempre que tudo parece irremediavelmente perdido.
Explicando melhor, Escobar também é um roteirista de cinema. Ou antes, um personagem neste terrível drama holliwoodiano que é o teatro das guerras do terror. Suas referências (1984, de George Orwell) são sempre clássicos da literatura e do cinema ocidental. Num mundo sempre em guerra, numa sociedade cada vez mais coninvolta num delírio coletivo de riqueza e cobiça, sempre haverá anticorpos culturais, do tipo Pepe Escobar, que paradoxalmente servem àquela mesma sociedade, ao inocularem um pouco de racionalidade e informação dolorosamente autêntica em suas artérias inchadas.
Neste sentido, o único ser verdadeiramente revolucionário seria aquele que ajudasse a raça humana a pôr um ponto final nesta tragédia desoladora, como um desses vilões que os roteiristas de Holliwood costumam inventar com certa frequência. Diante desses inimigos absolutos, todos nós (quando digo nós, refiro-me às massas) associamo-nos alegremente aos exércitos ocidentais, Pentágono à frente, para salvar o planeta. Os cinemas lotam para assistir ao heroísmo fantástico e incrivelmente altruísta do Homem de Ferro.
No entanto, não estamos mais em 2000. As falsidades da guerra no Iraque já se popularizaram, inclusive no cinema holliwoodiano, em suas vertentes mais progressistas. Os artigos de Escobar são esclarecedores e brilhantemente escritos, mas não trazem nenhuma novidade. Eles confirmam o que já sabíamos, até nos causam uma sensação perigosa de conforto. Nós sabemos a verdade, pensamos com orgulho e um sorrisinho maroto e astuto no rosto, enquanto bebemos uma cerveja no bar e contemplamos os patetas que assistem passivos, preguiçosos, atordoados, ao Jornal Nacional.
E aí voltamos aos roteiristas, aos escritores, aos blogueiros, aos jornalistas e produtores de conteúdo em geral. Ou antes, hoje em dia, todos participam, através das redes sociais, inventadas (todos os caminhos levam à Roma) no mesmo Estados Unidos. Todos colaboram, americanos ou não, ganhando royalties ou não. Todos irão dar combate nas batalhas culturais, embora na maior parte das vezes façam-no com trajes civis. Há guerras simbólicas sendo travadas diariamente, e o cinema profissional, enquanto indústria, enquanto produção que envolve o trabalho intensivo e o talento de milhares de técnicos, roteiristas, diretores, marketeiros, para não falar nos escritores (incluindo aí Pepe Escobar) que eventualmente produzem os livros nos quais esses filmes se basearão.
Neste labirinto não há muitas saídas que não seja a busca pelo esclarecimento, e a luta para que este esclarecimento se expanda cultural e politicamente através da arte, incluindo aí suas vertentes mais industriais, únicas que podem alcançar a grande massa, num espaço de tempo relativamente curto. Naturalmente, essa arte “industrial” só terá valor se vier embalada por um capital simbólico formado antes por realizações culturais de primeira grandeza, assim como Casablanca só tem um alto valor cultural e político porque víamos, refletidos naquele filme, ideais que aprendíamos a amar em outras plataformas: livros, outros filmes, debates. A mesma coisa vale para todos os filmes que transformaram nossas vidas. Nesse sentido, o preconceito contra os EUA é contraproducente e reacionário. É como alguém querer não usar o blogspot, wordpress ou facebook porque são americanos. A batalha cultural não será vencida com ódio, e sim com uma sublimação quase religiosa de todos os preconceitos. Ou antes, não com a negação do ódio e dos preconceitos, entendam bem, que não é possível. Sentimos ódio e temos preconceitos. Devemos superá-los não através da negação hipócrita de nossos vícios, e sim através da criatividade, humor, mau-humor, inteligência, um combate impiedoso e sistemático à má poesia, ao reacionarismo pedante, ao belicismo imbecil, e à cerveja quente.
Abaixo o texto de Pepe Escobar:
Guerra pornô: O novo sexo seguro
por Pepe Escobar, no Asia Times Online
Tradução de Luiz Carlos Azenha, do Viomundo
O início do século 21 é viciado em guerra pornô, um nobre esporte consumido por ‘batatas’ globais, digitais e de sofá [o autor se refere aos couch potatoes, os espectadores passivos do mundo]. A guerra pornô assumiu o palco na noite de 11 de setembro de 2001, quando o governo de George W. Bush lançou a “Guerra ao Terror”– que foi interpretada por muitos dos seus praticantes como uma forma sutil de legitimação do terror de estado dos Estados Unidos predominantemente contra muçulmanos.
Era também a guerra DE terror — como manifestação de terror de estado, em que o poder high tech, urbano, basicamente enfrentou a astúcia rural. Os Estados Unidos não tinham o monopólio disso; Beijing praticou esta guerra na província [muçulmana] de Xinjiang e a Rússia praticou na Chechênia.
Como a pornografia, a guerra pornô não pode existir sem se basear em uma mentira — numa representação grosseira. Mas, diferentemente da pornografia, a guerra pornô é pra valer; em vez de figurantes em filmes grosseiros e baratos, na guerra pornô as pessoas morrem de verdade — e aos montões.
A mentira para acabar com todas as mentiras no centro desta representação foi definitivamente estabelecida com o vazamento de um memorando de 2005 da Downing Street [a sede do governo britânico], no qual o chefe do serviço secreto M16 confirmou que o governo Bush queria derrubar Saddam Hussein ligando o terrorismo islâmico a armas (inexistentes) de destruição em massa. Assim, como estava no memorando, “as informações de inteligência e os fatos estão sendo ajustados em torno da política”.
No fim, George “ou conosco ou contra nós” Bush estrelou em seu próprio super-pornô — que foi tanto a invasão quanto a destruição do flanco leste da nação árabe.
A nova Guernica
O Iraque pode ser visto como o Guerra das Estrelas das guerras pornô — uma apoteose de sequências. Considerem a segunda ofensiva contra Fallujah no final de 2004. Na época eu descrevi como a nova Guernica. Também tomei a liberdade de parafrasear Jean-Paul Sartre, que escreveu sobre a guerra [do colonialismo francês] na Argélia; depois de Fallujah nunca mais dois norte-americanos poderiam se encontrar sem um cadáver entre eles. Para citar o Apocalypse Now, do Coppola, havia corpos, corpos por todo lado.
O Francisco Franco de Fallujah foi Iyad Allawi, o premier instalado no Iraque pelos Estados Unidos. Foi Allawi quem “pediu” ao Pentágono para bombardear Fallujah. Em Guernica — assim como em Fallujah — não houve distinção entre civis e guerrilheiros: valeu a lei do “Viva la muerte!”.
Comandantes dos fuzileiros navais dos Estados Unidos disseram abertamente que Fallujah era a casa do Satã. Franco negou o massacre de Guernica e culpou a população local — assim como Allawi e o Pentágono negaram qualquer morte de civis e insistiram que os “insurgentes” eram culpados.
Fallujah foi reduzida a escombros, pelo menos 200 mil residentes se tornaram refugiados e milhares de civis foram mortos, para “salvá-la” (ecos do Vietnã). Ninguém na mídia corporativa ocidental teve colhões para dizer que, de fato, Fallujah foi a Halabja norte-americana.
Quinze anos antes de Fallujah, em Halabja, Washington foi a muito entusiasmada fornecedora das armas químicas para Saddam, que as usou para matar milhares de curdos. Na época a Central de Inteligência Americana (CIA) disse que não foi Saddam, mas o Irã de Khomeini. Ainda assim, foi Saddam e foi deliberado, assim como os Estados Unidos fizeram em Fallujah.
Médicos em Fallujah identificaram corpos inchados e amarelados sem ferimentos, assim como “corpos dissolvidos”– vítimas do napalm, o coquetel de poliestireno e combustível de jato. Os moradores que conseguiram escapar denunciaram bombardeios com “gases venenosos” e “bombas estranhas que soltavam fumaça como se fosse um cogumelo… depois disso pequenos projéteis voavam deixando para trás longas colunas de fumaça. Os pedaços daquelas estranhas bombas explodiam em chamas que queimavam a pele ainda que se atirasse água sobre ela”.
É exatamente o que acontece com pessoas bombardeadas por napalm ou fósforo branco. As Nações Unidas baniram o bombardeio de civis com napalm em 1980. Os Estados Unidos são o único país do mundo que ainda usam napalm.
Fallujah também resultou num mini hit pornô; a execução sumária de um homem iraquiano ferido, sem defesa, dentro de uma mesquita, por um fuzileiro naval dos Estados Unidos. A execução, capturada em vídeo e vista por milhões no You Tube, soletrou de forma clara as regras “especiais” de engajamento. Os comandantes dos fuzileiros navais, na época, diziam a seus subordinados para “atirar em tudo o que se move e em tudo o que não se move”; para dar “dois tiros em cada corpo”; no caso de ver homens em idade de serviço militar nas ruas de Fallujah, para “derrubá-los”; e para metralhar e usar tanques contra todas as casas antes de adentrá-las.
As regras de engajamento no Iraque foram codificadas em um manual de campo de 182 páginas distribuído para cada soldado, pelo Pentágono, em outubro de 2004. Este manual de contra-insurgência enfatizava cinco regras; “proteger a população; estabelecer instituições políticas locais; reforçar o governo local; eliminar a capacidade dos insurgentes; e explorar informação obtida de fontes locais”.
Agora, de volta à realidade. A população de Fallujah não foi protegida: foi bombardeada para fora da cidade e transformada em massa de milhares de refugiados. As instituições políticas já estavam lá: a shura [espécie de conselho] de Fallujah governava a cidade. Nenhum governo local é capaz de comandar um monte de escombros com uma população em fuga, o que dizer de “reforçar o governo”. As “capacidades dos insurgentes” não foram eliminadas; a resistência se dispersou em 22 outras cidades que estavam fora do controle da ocupação dos Estados Unidos e se espalhou na direção de Mosul, ao norte; e os norte-americanos continuaram sem informações de “fontes locais”, já que antagonizaram todos os corações e mentes.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a maioria da população já tinha sido imunizada contra a guerra pornô. Quando surgiu o escândalo de Abu Ghraib, na primavera de 2004, eu dirigia em rodovias do Texas, visitando a Bushland. Praticamente todas as pessoas com as quais conversei a respeito atribuiram a humilhação dos prisioneiros iraquianos a “algumas maçãs podres”, ou defenderam o que aconteceu em básicas patrióticas (“precisamos dar lição em ‘terroristas’”).
Amo um homem uniformizado
Em tese, existe um mecanismo aprovado no século 21 para defender civis da guerra pornô. É o R2P — a doutrina da “responsabilidade de proteger”. É uma ideia que existe desde 2001 — na verdade, desde algumas semanas depois da guerra contra o terror ter sido declarada –, formulada pelo governo do Canadá e algumas fundações. A ideia era de que o concerto das nações tinha o “dever moral” de intervenção humanitária em casos como o de Halabja, para não mencionar o Khmer Rouge no Camboja, na metade dos anos 70, ou o genocídio em Ruanda, na metade dos anos 90.
Em 2004, uma comissão da ONU codificou a ideia — crucialmente autorizando o Conselho de Segurança a decretar “intervenção militar” apenas “como último recurso”. Então, em 2005, a Assembleia Geral das Nações Unidas endossou a resolução de apoio ao R2P e em 2006 o Conselho de Segurança passou a resolução 1674 sobre “proteção de civis em conflitos armados”; eles deveriam ser protegidos contra “genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”.
Agora pulemos para o fim de 2008, início de 2009, quando Israel — usando jatos norte-americanos — detonou um ataque em grande escala contra a população civil da faixa de Gaza.
Olhem a reação oficial dos Estados Unidos; “Israel obviamente decidiu se proteger e ao seu povo”, disse o então presidente Bush. O Congresso dos Estados Unidos votou por 390 a 5 para reconhecer “o direito de Israel de se defender dos ataques que partem de Gaza”. O governo de Barack Obama, que estava a caminho de assumir, ficou silencioso. Apenas a futura secretária de Estado, Hillary Clinton, disse que “apoiamos o direito de defesa de Israel”.
Pelo menos 1.300 civis — inclusive mulheres e crianças — foram mortas pelo terror de estado em Gaza. Ninguém invocou a R2P. Ninguém apontou para o fracasso de Israel em sua “responsabilidade de proteger” os palestinos. Ninguém pediu uma “intervenção humanitária” tendo como alvo Israel.
A mera noção de uma superpotência — e outros poderes menores — tomar decisões de política externa baseda em questões humanitárias, como proteger pessoas sob cerco, é uma piada. Já naquela época deu para entender como a R2P seria instrumentalizada. Não se aplicava aos Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão. Não se aplicava a Israel na Palestina. Seria eventualmente aplicável somente a governantes “bandidos”, que não fossem “nossos bastardos” — como Muamar Gaddafi, na Líbia, em 2011. Intervenção “humanitária”, sim; mas apenas para se livrar dos “bandidos”.
E a beleza da R2P é que ela pode ser colocada de cabeça pra baixo a qualquer momento. Bush pediu a “libertação” das mulheres afegãs — especialmente das que vestiam burca — dos “diabólicos” Talibã, de fato configurando a invasão do Afeganistão como uma intervenção humanitária.
E quando as ligações falsificadas de Saddam com a al-Qaeda e com armas de destruição em massa, inexistentes, ficaram claras, Washington passou a justificar a invasão, ocupação e destruição do Iraque via… R2P; “responsabilidade de proteger” os iraquianos de Saddam e em seguida de proteger os iraquianos deles próprios.
O matador acordou antes do sol nascer
O mais recente capítulo da série de episódios da guerra pornô foi o massacre de Kandahar quando, de acordo com a versão oficial do Pentágono (ou complô para esconder), um sargento do exército norte-americano, atirador de elite e veterano da guerra no Iraque — um assassino altamente treinado — atirou em 17 civis afegãos, inclusive em nove mulheres e quatro crianças, em dois vilarejos distantes três quilômetros um do outro, e queimou alguns dos corpos.
Como em Abu Ghraib, houve a usual onda de negativas do Pentágono — como “isso não somos nós” ou “não agimos desta forma”; sem mencionar o tsunami de reportagens da mídia corporativa dos Estados Unidos que humanizaram o herói-tornado-assassino-em-massa, como em “ele é um cara bacana, de família”. Em contraste, nem uma única palavra sobre o Outro — as vítimas afegãs. As vítimas não têm rosto; ninguém sabe o nome delas.
Uma investigação afegã séria estabeleceu que 20 soldados podem ter tido participação no massacre — como em My Lai, no Vietnã; e que incluiu o estupro de duas das mulheres. Faz sentido. A guerra pornô é uma subcultura de grupo letal — completa com assassinatos-alvo, vingança, dessecração de cadáveres, colheita de troféus (dedos e orelhas cortados), incêndio do Corão e urinar em corpos. É, essencialmente, um esporte coletivo.
Equipes de execução dos Estados Unidos deliberadamente mataram civis afegãos, a maioria adolescentes, como esporte, plantaram bombas em seus corpos e depois posaram com os cadáveres como se fossem troféus. Não foi acidente que algumas destas equipes operavam a partir de uma base perto da área do massacre de Kandahar.
E não deveríamos nos esquecer do ex-comandante dos Estados Unidos no Afeganistão, general Stanley McChrystal, que em 10 de abril de 2010 admitiu, francamente, “atiramos num número impressionante de pessoas” que não eram ameaça aos Estados Unidos ou à civilização ocidental.
O Pentágono vende a guerra do Afeganistão como vendeu a do Iraque (e mesmo, lá atrás, a do Vietnã); a ideia de que esta é uma contrainsurgência com foco na população — ou COIN — destinada a conquistar “corações e mentes” e parte de um grande esforço para construir uma nação.
É uma mentira monumental. O reforço de tropas de Obama no Afeganistão — baseado na COIN — foi um fracasso total. O que veio depois foi guerra clandestina, obscura, liderada por “equipes de matança” das Forças Especiais. Isso implica em uma inflação de ataques aéreos e noturnos. Sem mencionar a guerra de aviões não-tripulados, tanto no Afeganistão quanto nas áreas tribais do Paquistão, cujo alvo favorito são os casamentos da etnia Pashtun.
Incidentalmente, a CIA alega que desde maio de 2010, aviões não-tripulados superinteligentes mataram mais de 600 alvos humanos “cuidadosamente selecionados” — e, miraculosamente, nenhum civil.
Espere para ver este filme pornô de guerra celebrado numa orgia de produções conjuntas do Pentágono com Hollywood. Na vida real, isso é promovido por gente como John Nagl, que era da equipe do general David Petraeus no Iraque e que agora dirige o instituto pró-Pentágono Center for New American Security.
O novo macho estelar pode ser representado pelos soldados do Comando Conjunto de Operações Especiais (JSOC). Mas esta é uma produção do Pentágono, que criou, de acordo com Nagl, “uma máquina contraterrorista de matar em escala industrial”.
A realidade, no entanto, é muito mais prosaica. As técnicas da COIN, aplicadas por McChrystal, se sustentam em apenas três componentes; vigilância 24 horas baseada em aviões não-tripulados; monitoramento da telefonia celular; localização física dos telefones a partir dos sinais emitidos por eles.
Isso significa que qualquer pessoa na área sob o avião não-tripulado que estiver usando um celular pode ser definida como “terrorista” ou pelo menos como “simpatizante do terrorismo”. E então o foco dos ataques noturnos no Afeganistão passou de “alvos de alto valor” — integrantes de alto ou médio escalão da al-Qaeda e do Talibã — para qualquer pessoa acusada de ajudar o Talibã.
Em maio de 2009, antes da chegada de McChrystal, as Forças Especiais dos Estados Unidos faziam 20 ataques por mês. Em novembro, eram 90 por mês. Na primavera de 2010, eram 250 por mês. Quando McChrystal foi demitido — por causa de uma reportagem da [revista] Rolling Stone (ele estava competindo com a Lady Gaga pela capa; a Lady Gaga venceu) — e Obama o trocou por Petraeus, no verão de 2010, já eram 600 ataques por mês. Em abril de 2011 já eram mil ataques por mês.
É assim que funciona. Nem pense em usar um telefone celular em Kandahar ou outros províncias afegãs. Caso contrário, os “olhos no céu” vão te pegar. Você no mínimo será mandado para a cadeia, junto com milhares de outros civis taxados de “simpatizantes do terrorismo”; e analistas de inteligência vão usar suas informações para compilar novas listas de “matar/capturar” na rede para caçar civis.
Quanto aos “danos colaterais” civis dos ataques noturnos, eles sempre foram apresentados pelo Pentágono como “terroristas”. Exemplo; num ataque em Gardez em 12 de fevereiro de 2010, dois homens foram mortos; um promotor de justiça de um governo local e um oficial de inteligência afegão, assim como três mulheres (duas delas grávidas). Os matadores disseram ao comando conjunto Estados Unidos-OTAN em Cabul que os dois homens eram “terroristas” e que as mulheres foram encontradas amarradas e amordaçadas. E então o homem que era o alvo do ataque se apresentou dias depois para interrogatório e foi libertado sem sofrer qualquer acusação.
É apenas o começo. Assassinatos-alvo — como praticados no Afeganistão — serão a tática do Pentágono em todas as futuras guerras dos Estados Unidos.
Passe a camisinha, querida
A Líbia foi uma grande exibição da guerra pornô — completa com um toque romano de um chefe “bárbaro” derrotado, sodomizado e executado nas ruas, diretamente para o YouTube.
Isso, por sinal, é exatamente o que a secretária de Estado Hillary Clinton, numa visita-relâmpago a Trípoli, tinha anunciado 48 horas antes do fato. Gaddafi deveria ser “capturado ou morto”. Quando ela viu a imagem na tela de seu BlackBerry ela só conseguiu reagir com o terremoto semântico de um “Uau!”.
No minuto em que a resolução da ONU impôs uma zona de exclusão aérea na Líbia usando como cobertura a R2P, foi a luz verde para a troca de regime. O plano A sempre foi capturar e matar Gaddafi — no estilo de um assassinato-alvo afegão. Esta era a política oficial do governo Obama. Não havia plano B.
Obama disse que a morte de Gaddafi significou “a força da liderança norte-americana em todo o mundo”. Foi tão próximo de um “pegamos” (ecos da captura de Saddam pelo governo Bush) quanto se poderia esperar.
Com um bônus extra. Embora Washington tenha pago nada menos que 80% dos custos operacionais dos retardados da OTAN (grosseiramente, 2 bilhões de dólares), foi troco. Ainda assim, é estranho que tenham dito “fizemos”, já que a Casa Branca sempre disse que não era uma guerra; que era alguma coisa “cinética”. E que não tinha controle de nada.
Só os perdidamente ingênuos engoliram a propaganda dos 40 mil ataques aéreos “humanitários” da OTAN, que devastaram a infraestrutura da Líbia de volta à idade da pedra, como um Choque e Espanto em câmera lenta. Isso nada teve a ver com R2P.
Foi tão R2P quanto sexo seguro — com a “comunidade internacional” no papel de camisinha. A “comunidade internacional”, como todos sabem, é composta por Washington, alguns poucos membros da OTAN e os poderes democráticos do Golfo Pérsico, como Qatar e Emirados Árabes Unidos, mais a Casa de Saud nas sombras. A União Europeia, que até a prorrogação fazia a barra das saias de Gaddafi, rapidamente tropeçou em editorais que denunciavam o reino de 42 anos do “bufão”.
Quanto ao conceito de lei internacional, foi jogada na tubulação, tão suja quanto aquela em que Gaddafi foi encontrado. Saddam pelo menos teve um julgamento encenado num tribunal improvisado antes de enfrentar o carrasco (ele também acabou no YouTube). Osama bin Laden foi simplesmente apagado, em estilo-assassinato, depois da invasão territorial do Paquistão (sem YouTube, por isso muitos nem acreditam). O Gaddafi foi embora numa mistura de guerra aérea com assassinato. Eles são os Três Graciosos Escalpos da Guerra Pornô.
Doce emoção
A Síria é apenas mais uma narrativa da guerra pornô. Se você não pode R2P, simule.
E pensar que tudo isso foi codificado tanto tempo atrás. Já em 1997, a revista do Colégio de Guerra do Exército dos Estados Unidos definiu o que chamou de “futuro das guerras”. Foi descrito como “o conflito entre os mestres da informação e as vítimas da informação”.
Eles estavam certo de que “já somos mestres na guerra de informações… Hollywood está ‘preparando o campo de batalha’… A informação destrói empregos tradicionais e culturas tradicionais; seduz, trai e se mantém invulnerável… Nossa sofisticação no manejo da informação nos capacita a sobreviver e sobrepujar todas as culturas hierárquicas… Sociedades que temem ou que não conseguem gerenciar o fluxo de informação simplesmente não serão competitivas. Elas podem dominar a tecnologia para ver os vídeos, mas nós vamos escrever os roteiros, produzí-los e coletar os direitos autorais. Nossa criatividade é devastadora”.
Guerra de informação pós-tudo não tem relação com geopolítica. Como o proverbial produto de Hollywood, deve ser gerada a partir de emoções brutas; “ódio, inveja e cobiça — emoções em lugar de estratégias”.
Na Síria é exatamente como a mídia corporativa ocidental já escreveu o script de todo o filme; são as táticas da guerra de informação do Colégio de Guerra, na prática. O governo sírio nunca teve qualquer chance diante dos que “escrevem os roteiros, produzem e coletam os direitos autorais”.
Por exemplo, a oposição armada, os assim-chamados integrantes do Exército Livre Sírio (um coquetel impressionante de desertores, oportunistas, jihadistas e mercenários estrangeiros), levaram jornalistas ocidentais até Homs e depois insistiram em tirá-los de lá, em condições extremamente perigosas — com gente sendo morta — via Líbano, em vez de usar a ajuda da Crescente Vermelha. Era apenas a forma de escrever/impor um “corredor humanitário” até Homs. Foi teatro puro — ou guerra pornô empacotada como drama de Hollywood.
O problema é que a opinião pública ocidental agora é refém desta marca de guerra de informação. Esqueça a possibilidade de negociações pacíficas entre partes adultas. O que sobra é o roteiro binário de bons contra maus, onde o Grande Homem Mau deve ser destruído a qualquer custo (e junto com ele a esposa, puta esnobe que adora consumir!).
Só os terminalmente ingênuos para acreditar que os jihadistas — inclusive os rebeldes da OTAN na Líbia — financiados pelo Clube da Contrarrevolução do Golfo Pérsico, também conhecido como Conselho de Cooperação do Golfo (GCC) são um monte de reformistas democráticos queimando em boas intenções. Mesmo a Human Rigths Watch foi forçada a admitir que estes “ativistas” armados foram responsáveis por “sequestros, detenções e tortura”, depois de receber informações sobre execuções cometidas por grupos de oposição contra civis e soldados leais ao governo sírio.
O que esta narrativa pornô (leve e pesada) esconde, no fim, é a verdadeira tragédia síria; a impossibilidade do festejado “povo sírio” de se livrar de todos estes bandidos — o sistema Assad, a Irmandade Muçulmana controlada pelo Conselho Nacional Sírio, e o Exército Livre Sírio infestado de mercenários.
Ouçam o som do caos
Este parcial catálogo de vilezas invevitavelmente nos traz até o campeão de bilheteria da guerra pornô — o psicodrama do Irã.
2012 é o novo 2002; Irã é o novo Iraque; e qualquer que seja a estrada, para usar o novo lema neocon, homens de verdade vão a Teerã via Damasco, ou diretamente a Teerã, sem escalas.
Talvez apenas sob o Ártico seríamos capazes de escapar do cortejo cacófono de direitistas norte-americanos — e seus cães amestrados europeus — que salivam sangue e distribuem seu festival de falácias como “o Irã quer eliminar Israel do mapa”, “já deu de diplomacia”, “as sanções já deram o que tinham de dar”, ou “o Irã dentro de um ano, de seis meses, de uma semana, de um dia ou de um minuto vai montar sua bomba”.
Naturalmente estes cães de guerra nunca se importariam em acompanhar o que a Agência Internacional de Energia Atômica está fazendo, sem mencionar a Estimativa Nacional de Inteligência divulgada pelas 17 agências de inteligência dos Estados Unidos.
Porque, em grande medida, eles estão “escrevendo os roteiros, produzindo e coletando os direitos autorais” nos termos da mídia corporativa, eles podem sair ilesos de uma impressionante e tóxica fusão de arrogância e ignorância — sobre o Oriente Médio, a cultura persa, a questão nuclear, a indústria petrolífera, a economia global, sobre “o Resto” comparado com “o Ocidente”.
Assim como no Iraque em 2002, o Irã é sempre desumanizado. A “narrativa” insistente, totalmente histérica e fomentadora do medo, de “devemos bombardear agora ou depois”, é sempre sobre as tão inteligentes bombas destruidoras de bunkers e mísseis precisos, que vão inflingir devastação superlimpa em grande escala sem produzir um só “dano colateral”. Como sexo seguro.
E mesmo quando uma voz do establishment como o New York Times admite que nem a inteligência dos Estados Unidos, nem a de Israel acredita que o Irã decidiu construir uma bomba (uma criança de 5 anos poderia chegar à mesma conclusão), a histeria continua intergalática.
Enquanto isso, enquanto se prepara — “todas as opções estão na mesa”, Obama não cansa de repetir — para outra guerra no que já chamou de “arco de instabilidade”, o Pentágono encontrou tempo para reempacotar a guerra pornô. Levou apenas 60 segundos, num vídeo que agora está no YouTube, chamado Em Direção ao Som do Caos (Toward the Sound of Chaos), divulgado dias depois do massacre de Kandahar. Note qual é o público-alvo: o grande mercado dos pobres, desempregados e politicamente ingênuos jovens norte-americanos.
Ouçam o que diz a voz no mini-filme: “Onde o caos ameaça, os Poucos emergem. Fuzileiros navais se movem em direção aos sons da tirania, da injustiça e do desespero — com a coragem e a determinação para silenciá-los. Ao acabar com os conflitos, instalar a ordem e ajudar aqueles que não conseguem se ajudar, os fuzileiros navais enfrentam as ameaças de nosso tempo”.
Talvez, neste universo orwelliano, deveríamos pedir aos afegãos mortos, nos quais os fuzileiros navais urinaram, ou aos milhares de mortos em Fallujah, que fizessem uma resenha do filme. Bem, homens mortos não escrevem. Talvez pudessemos pensar no dia em que a OTAN vai instalar uma zona de exclusão aérea sobre a Arábia Saudita para proteger os xiitas das províncias do leste, enquanto os aviões não-tripulados do Pentágono disparam mísseis Hellfire contra os milhares de príncipes da Casa de Saud, arrogantes, medievais e corruptos. Não, não vai acontecer.
Mais de uma década depois do início da guerra contra o terror, é a isso o que o mundo chegou: uma audiência virtualmente mundial de preguiçosos, exaustos, atordoados, conduzidos de distração em distração, impotentemente viciados na desprezível atrocidade das guerras pornô.
Tradução Luiz Carlos Azenha
*Pepe Escobar is the author of Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War (Nimble Books, 2007) and Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge. His most recent book, just out, is Obama does Globalistan (Nimble Books, 2009).
Vilma Gomes
13/04/2012 - 13h18
Isso aí, Miguel. Temos que construir narrativas, estéticas e filosofias e lutas, como diria Raulzito.