Umberto Eco, o mensalão e a pizza da morte

O mensalão se tornou uma espécie de Protocolos dos Sábios do Sião do antipetismo. Os Protocolos, para quem não sabe, foi um texto amplamente difundido a partir do século XIX, no qual supostas lideranças do sionismo global articulavam a dominação do mundo. Para atingir esse objetivo, externavam uma ausência de escrúpulos que fariam Maquiavel parecer um anjinho pelado das igrejas barrocas de Ouro Preto. Em “Mein Kampf”, Hitler afirmava que somente quando este livro (Os protocolos) se tornasse patrimônio comum da humanidade, o perigo hebraico seria eliminado.

Trata-se de uma fraude. Uma das maiores fraudes de todos os tempos, conforme já provado por especialistas, embora qualquer um com nervos em ordem já soubesse disso. Em seu último romance, Umberto Eco inventa uma história fabulosa cujo principal personagem, um talentoso falsificador italiano residente em Paris, seria o autor verdadeiro dos Protocolos. Eu acabei de ler hoje o Cemitério de Praga e queria muito citá-lo. A chance é agora, desculpem se forço um pouco a barra.

A origem real dos Protocolos foi o conluio entre a farsa, o preconceito e a imprensa, produzindo um monstro tão grande que até hoje há gente que acredita que os judeus querem dominar o mundo. Quer dizer, querer dominar o mundo todos querem e não creio que seja um pecado maior: o problema são os meios incríveis usados pelos judeus para fazê-lo: dominando a imprensa, as universidades, as artes, o comércio, e por aí vai. Mais de seis milhões de judeus foram mortos na II Guerra por conta da difusão dessas mentiras.

Isso não significa que não tenham existido banqueiros judeus desonestos, por exemplo. Daí para a existência de um complô hebraico internacional, ou para a autenticidade de um documento tão grotesco, há uma diferença tão grande como entre o Tietê das marginais e a nascente do São Francisco.

Dito isto, analisemos o mensalão. Ontem, o Domingo Espetacular divulgou uma entrevista com o ex-prefeito de Anápolis, Ernani José de Paula, em que ele denuncia o conluio entre Demóstenes Torres e Carlos Cachoeira para derrubar o então ministro da Casa Civil, José Dirceu. Cachoeira fez dois ataques: divulgou gravações de Maurício Marinho, funcionário dos Correios, recebendo propina; e de Waldomiro Diniz, fazendo a mesma coisa. O ataque acabou dando um resultado inesperado para a dupla, que pretendia se vingar de Dirceu por ter vetado a nomeação de Demóstenes Torres para a Secretaria Nacional de Segurança Pública, um dos órgãos mais importantes do Ministério da Justiça. O resultado foi uma entrevista de Roberto Jefferson à Folha de São Paulo dizendo que o governo pagava uma mesada de 30 mil reais aos deputados para votarem os seus projetos. Jefferson, atingido pela denúncia contra Marinho, que dissera ser “protegido” dele, encasquetou que Dirceu estava por trás da divulgação do vídeo e resolveu dar o troco. Tinha início a chamada crise do mensalão, até hoje alardeada pela mídia conservadora como “o maior caso de corrupção da história”. Não se sabe o critério para se posicionar o mensalão tão alto neste ranking. Outro dia, ficamos sabendo que a Justiça Federal condenou tucanos a pagarem indenização de 24 bilhões de reais ao erário. Como o mensalão girou, pelo que se sabe, não mais que 20 milhões de reais, o critério não pode ser o valor.

Assim como os Protocolos, o escândalo ganhou colaboração de muitos ficcionistas, a começar pelo próprio denunciante, que foi cassado algum tempo depois justamente por não conseguir provar sua acusação (mais recentemente, Jefferson negou a existência do mesmo, dizendo que foi uma peça de retórica sua). Depois de muita investigação, descobriu-se um esquema de caixa 2 praticado pelo PT nas eleições de 2002. Não havia nenhum pagamento mensal a deputado. Não se apurou nenhum depósito de 30 mil reais a ninguém. E até hoje não se conseguiu identificar nenhuma votação no Congresso em que fizesse sentido o pagamento de propina para comprar o apoio dos parlamentares. Ao contrário, naqueles primeiros anos do governo Lula, não houve votação de nenhuma lei ou projeto que ampliasse o poder do Executivo, nem que promovesse qualquer mudança revolucionária que justificasse uma jogada tão arriscada.

O único mensalão provado, com existência de depoimentos gravados, e onde houve uma votação em que estava em jogo a ampliação do poder Executivo, foi o praticado por FHC em 1997. O deputado Ronivon Santiago (PFL-AC) afirmou que vendeu o seu voto a favor da emenda da reeleição por R$ 200 mil, segundo relatou a um amigo. A conversa foi gravada e a Folha teve acesso à fita. Ronivon afirma que recebeu R$ 100 mil em dinheiro. O restante, outros R$ 100 mil, seriam pagos por uma empreiteira -a CM, que tinha pagamentos para receber do governo do Acre. Segundo ele, outros também venderam seu voto.

Entretanto, é pueril, na minha opinião, dizer que o “mensalão” não existiu. Assim como os Protocolos, ele existiu sim. A partir das gravações feitas por Cachoeira e divulgadas com estardalhaço pela Veja, aliadas à oportuna crise de fúria de Roberto Jefferson, a oposição partidária e a imprensa corporativa, que tinham muitos interesses financeiros contrariados em comum, articularam um ataque midiático de grandes proporções para derrubar o governo e assumir as rédeas do poder novamente. Assim como aconteceu aos Protocolos, não faltavam exemplos de judeus sovinas, pedantes ou desonestos para corroborar a versão. No caso, foram à cata de petistas corruptos. A ascensão do petismo ao poder havia criado uma rede de intrigas, invejas, frustrações, inevitáveis neste processo. Para cada petista que ganhava um bom cargo no governo, havia dez invejosos dispostos a detonar o partido na primeira oportunidade. Foi então que vimos o surgimento, em larga escala, de ex-petistas enfurecidos, com sangue na boca, querendo detonar o partido por “rasgar seus princípios”. Não podemos esquecer que o mensalão teve contribuição fundamental de uma grande massa de petistas ressentidos, que invadiam as nascentes redes sociais para falar mal de seu partido.

O operação Monte Carlo e o desbaratamento da quadrilha de Cachoeira, assim como a prisão e condenação do banqueiro Daniel Dantas, ajudam a entender que interesses contrariados são esses. Os grupos de mídia vem penetrando ousadamente no ramo da educação, tentando obter lucros milionários na venda de livros didáticos para o Estado – o que não seria crime, não fosse os métodos que usam para lograr seus objetivos. Fora isso, tinham interesse em influenciar mais diretamente as mudanças nos sistemas de comunicação: internet, tv digital, canais fechados.

A blogosfera, desta vez, está na vanguarda das denúncias destas tramóias, que tem proporções ainda maiores que o escândalo Murdoch, que levou ao fechamento de um dos maiores jornais britânicos. Lá, o jornal subornava policiais, autoridades e espionava ilegalmente. Aqui, há provas de que a revista Veja espionava ilegalmente políticos (através da parceria que mantinha com Cachoeira) do campo “adversário”, com objetivo não só de vender mais exemplares, como enfraquecer o governo e mesmo derrubá-lo, visando empossar um grupo político que facilitasse seus negócios. Se isso não é o que podemos chamar de “golpismo midiático”, então eu sou uma cenoura transgênica e Elio Gaspari é na verdade um anão semi-analfabeto que vive no interior do Piauí.

Para sorte desses mafiosos, não existe, no Brasil, um órgão que fiscalize e puna as empresas de mídia, como há na Inglaterra, de maneira que qualquer movimento do governo neste sentido ganha a implicação de “ataque à liberdade de imprensa”.

No entanto, nada como um dia atrás do outro e o mesmo ambiente de liberdade que permitiu à imprensa adotar, em determinados momentos, uma postura extremamente partidária, também criou uma blogosfera aguerrida, que hoje responde na mesma moeda, muitas vezes pautando a grande mídia. Se a imprensa se arvora o papel de fiscalizar os governos, a internet assumiu a função, ainda mais difícil, de fiscalizar a mídia. Desacostumados a essa nova realidade, colunistas e âncoras dos grandes jornais passararam a se referir à blogosfera com uma agressividade que trai o seu desconforto.

Em meio a tanto burburinho (com direito inclusive a Stanley Burburinho, rs), que revela uma democracia vibrante, onde a luta ideológica se dá num espaço de maravilhosa liberdade política, muita gente ainda se angustia com a possibilidade de sermos passados para trás pelo conluio entre um Judiciário (em alguns casos) conservador e corrupto, um Executivo covarde e oportunista e um Legislativo que reúne todos os vícios anteriormente mencionados.

Prepara-se uma grande pizza!

Somos um país de otários!

Permitam-me discordar. O próprio fato de termos investigações de grande porte conduzidas pela Polícia Federal, como a que prendeu Cachoeira e dezenas de membros do próprio Estado, e desbaratou o famigerado Clube Nextel, para mim isso é o sinônimo da “anti-pizza”. As pessoas esqueceram o significado do conceito de “pizza”. Este acontece quando há suspeitas mas não se investiga e o caso é abafado pela imprensa. No escândalo Demóstenes, a investigação foi concluída, há dezenas de presos importantes, entre eles muitos funcionários da própria Polícia Federal, um senador teve a sua carreira política destruída e o escândalo explodiu na imprensa e nas redes sociais com a força de um tsunami. Muitos analistas sérios cogitam inclusive o fim do DEM. Caso seja mesmo uma pizza, é uma pizza letal! A pizza da morte!

No Congresso, a discussão sobre abertura ou não de CPI dependerá de complexas negociações sobre as implicações que esta poderá ter nos trabalhos legislativos. Ao governo, raramente uma CPI é interessante, porque atrapalha a aprovação de leis e reformas importantes para o dia a dia do país.

Eu torço, porém, para que duas CPIs sejam abertas: a da Privataria e a do Cachoeira. Este é o momento do Congresso contrariar o governo e agir com independência, porque isso sim ajudaria a erguer sua imagem aos olhos da opinião pública brasileira. Do contrário, o Congresso continuará vendo a popularidade da presidente crescer e a sua própria imagem continuar declinando.

Assista aqui a entrevista de Ernani de Paula ao Domingo Espetacular, exibida neste domingo, onde o ex-prefeito de Anápolis confirma o conluio entre Cachoeira e Demóstenes para prejudicar Dirceu.

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O colunismo de oposição anda totalmente biruta nos últimos dias. Reinaldo Azevedo da Veja nunca encarnou tão bem o professor Hariovaldo. Agora passou a atacar até figuras neutras do jornalismo brasileiro, como Elio Gaspari. Com isso, ele ajuda a isolar a Veja ainda mais. Olha só que frase engraçada do Reinaldo:

Os liberais autênticos, os que se opõem ao lulo-petismo — e a qualquer outra vigarice — e os que lastimam a política tomada por ladrões devem saber: estão com os bons valores!

É ou não é um legítimo e ardente discípulo do professor Hariovaldo?

Outros, como Noblat, continuam insistindo na tese de que os petistas são gente de má-fé que está se aproveitando do infortúnio de Demóstenes para defender a corrupção. Olha só que exemplo de maniqueísmo simplório:

O que pretendem com isso? Banalizar a corrupção? Talvez.

Enfraquecer os que a combatem? Pode ser.

Aumentar o ceticismo dos que acompanham sem dar valor as denúncias de novos casos de apropriação do dinheiro público? Na mosca!

Este é o objetivo principal de coro tão afinado: os políticos são corruptos. Voto porque a lei me obriga. Mansaleiros? Liga não. Tem por toda parte, do PT ao DEM.

Faltou a Noblat dizer a quem se refere? Aos petistas em geral? A gente como Maurício Dias, da Carta Capital, que aproveita a queda do senador hipócrita para lembrar o udenismo e o mau que este causou ao país, estando na base de todos os golpismos que nos assolaram nos últimos 100 anos?  Não, Noblat, a grande maioria da população brasileira não perdoa nenhum corrupto, e continuará atenta a todo tipo de denúncia, seja contra quem for, mas cobrando que as denúncias sejam corretas, baseadas em provas contundentes, e não em ilações baratas, em preconceito ideológico, ou, pior, em interesses escusos e obscuros, como vimos que era o caso de boa parte das denúncias publicadas na Veja. Que sejam denúncias responsáveis, e não leviandades verdadeiramente golpistas, como foi aquele episódio ridículo em que o Jornal Nacional deu 7 ou 8 minutos para um bandidinho de terceira, como Rubnei Quicoli, dizer que estava articulando um financiamento amigo de 8 bilhões de reais junto ao BNDES. Isso às vésperas de uma eleição presidencial!

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Por fim, vale a pena dar uma olhadinha na entrevista do Perillo (governador de Goiás enrolado até o pescoço no esquema de Cachoeira) para o Estadão. Se não pertencesse ao PSDB, teria sido escalpelado. Pelas informações que temos, conforme publicado nesta final de semana na Istoé e no blog do Nassif, Perillo só resiste porque a mídia continua exercendo uma blindagem custosa e talvez inútil. Perillo vai sangrar até o final de seu mandato e dificilmente elegerá o sucessor. Essa entrevista, em que não dá nenhuma resposta satisfatória, apenas o complica – ou complicaria, caso o Estadão lhe dedicasse o mesmo tratamento que dá a políticos de outros partidos.

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A estagnação de Haddad nas pesquisas de intenção de voto está gerando ao menos um fato positivo: estimula o PT a calçar as sandálias da humildade e apoiar o PSB em outras cidades, com isso ajudando a cimentar uma aliança política que será muito importante em 2014.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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