O Brasil não voltou aos anos 50!

Hoje era dia de escrever sobre cultura no Cafezinho, mas sou obrigado a mudar mais uma vez a agenda para apagar um incêndio provocado pela Folha. O complexo de terceiro mundo baixou na Barão de Limeira. Ao ler a matéria, o internauta que acompanha o Cafezinho deve estar se perguntando se eu não estou doido ou coisa parecida ao negar que haja desindustrialização no Brasil.

Em primeiro lugar, eu não nego nada, eu questiono. Há uma crise na indústria brasileira, por conta de câmbio desfavorável, concorrência asiática, falta de produtividade, problemas de infra-estrutura, juros altos. Mas há crise também na indústria de outros países, sobretudo nos desenvolvidos.

A realidade de muitos setores da indústria é de crise constante, por conta do dinamismo acelerado da economia mundial. O sujeito constrói uma fábrica de telefone, e no ano seguinte aqueles modelos são ultrapassados por um outro mais moderno produzido na Coréia do Sul. No Brasil, assistimos toda uma cadeia de indústrias têxteis e calçadista sendo desmantelada, há anos, pela concorrência asiática. Cada vez menos gente paga 300 ou 400 reais por um sapato, podendo pagar 40 ou 50 reais por um modelo importado da China. É complicado mesmo. Essas crises, cruéis mas inevitáveis, não correspondem a um processo de desindustrialização, porque não caracterizam, numa visão de conjunto, uma primarização da economia. Outras indústrias nascem. Outras indústrias não conhecem crise e continuam crescendo. As fábricas de sapato nos EUA e Europa já fecharam há muito tempo.

O jornal ilustra a matéria com esse lindo gráfico:

 

 

Muito interessante, mas o Brasil de 1956 era bem diferente do Brasil de hoje. O PIB brasileiro em 1956, total e per capita, era de um país pequeno e atrasado. Meia dúzia de indústrias no ABC paulista representavam, portanto, uma boa parcela do produto interno bruto.Na agropecuária, exportávamos café, mas nada de soja, milho, frango. A agropecuária brasileira moderna nasceu há 20 anos.

Mas não adianta falar, vamos aos dados.

Eu achei um blog de economia estadunidense que explica o seguinte: não é mais sequer correto chamar os países mais desenvolvidos de “países industrializados”. Há anos, as indústrias destes países vem migrando para nações mais pobres, onde o custo da mão-de-obra é menor. Usando números oficiais, a autora faz uma tabela com dados dos países que integram o chamado G20. Na tabela, vemos na última coluna da direita a participação percentual das manufaturas (ou indústria de transformação) no produto interno bruto dos países.

Repare que a indústria brasileira de transformação tem um peso de 15% no PIB nacional. Nos EUA, o país mais rico e com a economia mais diversificada no planeta, a participação do mesmo setor no PIB é de 13%! Na Alemanha  e Japão, países que não possem agropecuária nem indústria extrativa, o peso da indústria de transformação é maior, de 21%. Na Inglaterra, porém, a participação da indústria de transformação foi de 12% em 2008.

Há uns meses, eu escrevi um post aqui a partir de uma matéria publicada também na Folha, que trazia alguns dados que permitiam uma visão bastante positiva da indústria nacional. Naturalmente, a Folha ressaltou apenas os aspectos negativos, como a queda da participação da indústria brasileira entre os emergentes – por causa, claro, da China. Com base em números da Organização para Desenvolvimento Industrial (Unido), entidade coligada às Nações Unidas (ONU), os analistas entrevistados pelo jornal concluíram, contudo, que a indústria brasileira era uma das maiores do mundo! Não sou eu que estou dizendo. Repito um trecho da matéria da Folha:

O economista Júlio Gomes de Almeida, do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), observa que esse patamar mantém a indústria brasileira entre as maiores do mundo. (…)

O economista da USP Carlos Eduardo Gonçalves, por sua vez, considera normal que a indústria cresça menos e perca espaço na economia. Ele observa que a industrialização do Brasil ocorreu com mais força nos anos 70 e que agora o país trilha o caminho dos países desenvolvidos, onde o setor de serviços ganha mais relevância.

 

A tabela acima mostra que o PIB industrial per capita no Brasil (Manufacturing Value Added – MVA per capita) em 2009 foi de US$ 594,08.  É um valor superior ao da Índia, Rússia e maioria dos países em desenvolvimento. A média do PIB per capita dos países em desenvolvimento em 2009 foi de US$ 282 (sem a China) e US$ 399 (com a China).

A tabela também traz a participação da indústria de transformação no PIB em 2009 (MVA as percentage of GDP).  Repare nas tabelas abaixo que esta participação vem caindo em todos os países, com exceção da China. Tirando a China, que é um caso à parte, a participação da indústria no PIB oscila entre 13% e 16% tanto na elite das nações emergentes como nos países desenvolvidos. Ou seja, houve uma tendência mundial de avanço do setor de serviços, acentuada com a chegada das novas tecnologias de informática, comunicação e internet.

O PIB industrial brasileiro per capita era superior ao da China até 2005. O caso da China é de uma excepcionalidade tão grande, todavia, que as estatísticas trazem colunas com e sem o país.

Alguém poderia indagar porque o PIB industrial per capita é tão alto nos EUA e corresponde a somente 13% a 15% do PIB? Ora, porque o PIB americano, que tem uma magnitude monstruosa, é baseado sobretudo no setor de… serviços. É a mesma coisa que acontece no Brasil. A economia brasileira vem crescendo a um ritmo constante há dez, doze anos, e se diversificando, com ênfase no setor de… serviços. Sendo que, no caso do Brasil, é preciso considerar o recente boom agropecuário, proporcionado pelas novas técnicas de irrigação, adubação e controle de pragas, que fizeram o PIB agropecuário brasileiro explodir. Este boom foi inflado ainda, nos últimos anos, pelo aumento no preço das commodities, outro fato que altera a participação dos setores econômicos, elevando a posição no ranking das atividades primárias e reduzindo a da indústria.

O aumento do PIB per capita possibilitou um grande aumento na importação e consumo de bens e serviços, o que também provoca mudança nos pesos relativos. A partir do momento em que as mulheres brasileiras podem ir com mais frequência ao salão de beleza, isso eleva o peso dos serviços no PIB e, consequentemente, faz cair o peso da indústria.

Enfim, o leitor pode ficar tranquilo: o Brasil não está voltando aos anos 50. A tese da Folha é absurda e ofensiva.

Quando se noticia que o investimento estrangeiro produtivo (não especulativo) no Brasil chegou a US$ 66 bilhões em 2011, não é porque o Brasil está vivendo um grande retrocesso. Os grandes capitalistas mundiais não são malucos de fazer investimentos de longo prazo num país que afunda. E os próprios investimentos estão vindo, em grande parte, para integrar projetos de ampliação ou criação de unidades industriais. Mesmo com todo esse dinheiro, não podemos esquecer que no Brasil, como todo país de economia diversificada, o setor de serviços é o que mais cresce. O Cafezinho é uma atividade, por exemplo, ligada ao setor de serviços. Não existia Cafezinho há pouco mais de um ano. Cada assinatura que obtenho representa uma pequena alta na participação do setor de serviços na economia brasileira, e uma pequena queda na participação da indústria. Para mim (e para o Brasil), está ótimo. Esse é o caminho seguido pelos países desenvolvidos. Esse é o caminho que o Brasil deve trilhar. Não entre na onda da Fiesp, que tem interesse em pintar uma crise industrial para arrancar redução de impostos e empréstimos a custo baixo do governo.

 

 

 

 

 

 

Ilustração da capa: Eugene Delacroix.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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