por Mauro Santayana
De repente, e só agora, o que nós, os pré-históricos, advertíamos, passou a preocupar os gênios iluminados do liberalismo reciclado. É o caso do economista André Lara Resende que, em artigo divulgado pelo Valor Econômico, retorna ao alarme do Clube de Roma, e volta a preconizar uma parada no crescimento econômico, a fim de salvar o mundo. O mundo dos desenvolvidos, bem se sabe, porque o congelamento da situação nos condenaria ao subdesenvolvimento eterno. Deixando de lado a preocupação malthusiana, o que seu ensaio revela talvez seja certa mauvaise conscience, dissimulada na linguagem acadêmica, por ter, em sua vitoriosa carreira no mercado de capitais, se desviado das preocupações humanísticas de dois homens muito próximos de sua formação: seu pai, Otto Lara Resende, e Hélio Jaguaribe, que cita nesse trabalho.
Meno male, como dizem os italianos, que não está, como o seu parceiro Pérsio Arida, condenando o aumento do salário mínimo – e dos salários, de modo geral. Embora ambos busquem defender a política econômica que ajudaram a elaborar e a colocar em prática, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, há diferença de aproximação entre o ensaio de Lara Resende e a entrevista de Pérsio Arida. Apesar disso, as duas manifestações se encaixam, como se houvessem sido previamente ajustadas, com um objetivo comum. Esse objetivo é o de justificar o neoliberalismo e, em benefício marginal, fazer a apologia do governo a que serviram. Como no poema de Hofmansthal, em que o oculto se esconde na superfície, esse propósito fica bem claro no pensamento dos dois amigos e associados. Arida é mais explícito, quando afirma que há hoje no Brasil um pacto anti-liberal entre as elites e o governo. É até razoável que haja um pacto entre os empresários brasileiros e o governo atual, contra a desnacionalização da economia, que o governo neoliberal promoveu. Mas é equívoco atribuir a emersão dos Brics à globalização da economia, como ela foi concebida pelo Consenso de Washington e decidida pelas grandes famílias que dominam o mundo. Ao contrário: os Brics surgiram como reação ao projeto de domínio universal da economia por Wall Street, sempre a serviço dos verdadeiros senhores, os principais acionistas das grandes instituições financeiras, como o Goldman Sachs.
Apesar de sua cadência retórica, o problema do mundo – e do Brasil – é bem outro. E bem mais simples. Se a produção de bens e serviços do planeta não pode continuar crescendo no ritmo dos últimos cem anos, a solução não se encontra na economia mas, sim, na combinação ética entre a ciência e a tecnologia, sob o controle rígido da política, ou seja, das instituições do Estado. André Lara Resende foi cauteloso, no que se refere à ditadura das instituições financeiras, mas Pérsio não esconde a sua posição: é preciso salvar os bancos, mesmo que eles sejam criminosos. Pérsio Arida é banqueiro, como se sabe.
É interessante comparar o pensamento dos dois brasileiros com o de André Orleán. Orléan é um respeitável economista que, aos 24 anos, já dirigia o Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos da França e, há 25 anos, ocupa o cargo de diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique e também a presidência da Associação Francesa de Economia Política. Em entrevista ao jornal Le Monde, publicada ontem, ele vai direto ao ponto: quem governa hoje a Europa é o mercado. Não o mercado de bens tangíveis, mas o mercado de capitais. “O poder político, afirma Orléan, se conforma às suas prioridades e teme suas avaliações”. Ao mesmo tempo, ele diz, o mercado é um soberano indeciso e incoerente.
Lembra o economista – que acaba de publicar o livro “L’Empire de la Valeur, Refonder l’Economie” – que historicamente o primado da política, ou seja, sua capacidade de enquadrar os interesses financeiros, teve como instrumentos básicos os bancos centrais. É necessário, assim, não perder esse mandamento da realidade: só por meio do poder monetário pelo Estado é possível fazer com que prevaleça o interesse coletivo. Mas isso exige que os bancos centrais estejam diretamente submetidos ao poder político. Não é isso que ocorre hoje na Europa. O Banco Central da União Européia está desatrelado totalmente do poder político. Na verdade, sua subordinação é ao sistema financeiro internacional, capitaneado pelo Goldman Sachs. Nisso, Orléan vê uma crise mais profunda da democracia européia e de sua impotência congênita. Assim, resume o entrevistado, se pode dizer que a autonomia radical do Banco Central Europeu “significa que não há mais soberania européia”. Orléan lembra que os mercados financeiros não se auto-regulam, pelo menos em tese, como os mercados de bens tangíveis, em que compradores e vendedores atuam de acordo com seus interesses e as circunstâncias. No mercado de capitais, se trata de apostas especulativas. É um mercado de promessas. Sua lógica é de natureza mimética: cada investidor se coloca diante do que se imagina que os outros vão fazer. Eles se parecem, diz o economista, a certos meios de informação, que se esforçam não por descobrir os fatos mais importantes, e sim, para publicar o que o público deseja. Não se pode confiar nunca nos preços financeiros, seja a taxa de juros, a taxa de câmbio ou o valor de uma ação.
Orléan diz que nem sempre foi assim. Nos modelos passados do capitalismo, o controle das empresas se encontrava nas mãos de seu proprietário, ou quando o capital era muito diluído, nas mãos de seus administradores contratados. Nesses capitalismos, só o capital “flutuante” era deixado ao mercado. O resto ficava sob o domínio de instituições específicas, fosse das famílias, dos bancos ou do Estado, como nas grandes sociedades de economia mista. A partir de 1980, foram liquidados progressivamente os blocos de controle, considerados muito dispendiosos e porque os jogos do mercado faziam surgir oportunidades de lucros mirabolantes. Isso criou uma nova forma de capitalismo, financiarizado, em que a diversidade de pontos de vista é menos nítida, porque o mercado constitui o coração das avaliações econômicas, sempre subjetivas. Em conseqüência, resume, o primado da política sobre a avaliação global foi derrubado pelas finanças. É uma situação inédita, que coloca em risco a vida democrática.
Entre outros absurdos, Orléan mostra como os bancos centrais emprestam aos bancos a juros de 1%, como o BCE fez, ao entregar às instituições bancarias quase 500 bilhões de euros, e esses bancos repassam aos estados a juros de 6% ao ano, como ocorre com a Itália, e a 5,5%, no caso da Espanha. Como se sabe, o BCE, pelos seus estatutos, não pode emprestar diretamente aos Estados. É interessante registrar que tanto no BCE, ao emprestar aos bancos a 1%, quanto no governo da Itália, ao pagar as altas taxas aos bancos, são ex-executivos (será que são mesmo ex?) do Goldman Sachs que tomam a decisão. Mário Draghi no BCE e Mário Monte, na chefia do governo italiano.
Orléan recomenda, como primeiro passo, adotar o Glass-Steagall Act, de 1933, que proibiu aos bancos de depósitos atuar como bancos de investimentos. Essa decisão foi revogada pelo governo americano em 1999. É inadmissível que a dívida privada dos bancos e de seus especuladores se transforme em dívida pública, como está ocorrendo hoje na Europa, e com mais lucros ainda para as instituições criminosas. Quem paga o prejuízo são os trabalhadores, com os ajustes fiscais que reduzem os serviços de saúde, de educação e de segurança.
A entrevista do economista francês é direta, clara e simples, como costumam ser as idéias mais sérias.