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País de vagabundos?

A segunda-feira despertou quente, preguiçosa e sem muitas novidades. Demorei a achar alguma coisa que valesse a pena analisar. Até que enfim, encontrei uma matéria no Estadão que insinua justamente que somos um país de vagabundos e preguiçosos, e a prova disso é que trabalhamos cada vez menos.

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A segunda-feira despertou quente, preguiçosa e sem muitas novidades. Demorei a achar alguma coisa que valesse a pena analisar. Até que enfim, encontrei uma matéria no Estadão que insinua justamente que somos um país de vagabundos e preguiçosos, e a prova disso é que trabalhamos cada vez menos.

A matéria é um exemplo primoroso de como se pode transformar uma excelente notícia numa tragédia. Uma alquimia às avessas.

O IBGE identificou que o número de trabalhadores que eram explorados com cargas horárias superiores a 50 horas por semana, sem pagamento de horas extras, caiu substancialmente nos últimos dez anos, na esteira do aumento da formalização do emprego no país.

E o que diz o Estadão: ele simplifica o negócio e dá uma manchete dizendo, simplesmente, que o brasileiro trabalha menos hoje do que há dez anos. A insinuação de que somos um povo com tendências vagabundas se torna explícita em várias passagens do texto, a começar pela abertura:

O brasileiro passa cada vez menos tempo no trabalho. Dados do Censo 2010 revelam que o porcentual das pessoas que trabalham mais de 45 horas por semana caiu quase pela metade em uma década.

O problema da reportagem, como de praxe, é na manchete, nos subtítulos e na interpretação. Se você ler o jornal com o pé atrás, e disposto a gastar mais tempo filtrando as matérias de suas interpretações tendenciosas do que lendo o texto em si, poderá obter informações úteis para entender a evolução do mercado de trabalho no Brasil.

Confira a manchete da primeira página:

Esse gráfico, na página da matéria, no entanto, desmente o título. Desmente inclusive as chamadas no próprio gráfico:

 

Observe que houve queda principalmente entre a parcela que exercia cargas horárias além do teto máximo estabelecido pela lei. Mas o número de trabalhadores que trabalham dentro da faixa máxima, de 40 a 44 horas por semana, cresceu de 33,6% para 46% da força de trabalho.

A interpretação de que o brasileiro está “trabalhando cada vez menos” é ofensiva. Ela sugere uma tendência que não se verifica nos dados. O que temos é uma formalização do emprego, que leva necessariamente, por sua vez, a uma consolidação da carga horária para dentro dos limites exigidos pelas leis trabalhistas. Conforme as taxas de emprego se estabilizam, as variações da carga horária também serão reduzidas.

Todos os entrevistados pelo jornal afirmam isso, que a redução do tempo de trabalho na estatística do IBGE é um fator positivo, que reflete a formalização do emprego. Um deles lembra ainda que há uma parcela da mão-de-obra que vem procurando se especializar, dedicando mais tempo, portanto, aos estudos.

Leia os seguintes trechos:

“A formalização do trabalho regula a jornada de trabalho e a hora extra. A empresa ou o empregador vão evitar de pagar hora extra, portanto, vão reduzir a jornada para o que é oficial”, diz Arnaldo Mazzei Nogueira, professor doutor da FEA-USP e PUC-SP.

Pizza. Isso aconteceu, por exemplo, com grande parte dos entregadores da pizzaria Dídio, da Lapa. A profissão era bastante informal no início da década, mas pouco a pouco mais vagas com carteira assinada foram surgindo. Hoje, na Dídio, todos os entregadores trabalham em horário definido, com direito a férias e 13.º. “Dá uma tranquilidade que eu não tinha alguns anos atrás, quando trabalhava em outra pizzaria, não tinha hora para sair e ainda ganhava menos que aqui”, conta Eduardo Evangelista Nunes, de 50 anos.

(…)

Para o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, outro fator que pode ter influenciado a redução da jornada de trabalho foi o aumento da quantidade de pessoas que divide o dia entre trabalho e estudos, de olho numa melhor qualificação. “Pode ser que essas pessoas tenham diminuído um pouco a carga de trabalho para poder ter mais tempo de estudo.”

Outro fator importante para reduzir o tempo médio de trabalho foi a participação feminina:

O mercado de trabalho mais feminino, tendência da última década, também colaborou para reduzir a jornada. A diferença da participação entre homens e mulheres em postos de trabalho caiu de 20 pontos porcentuais para apenas seis em dez anos. “As mulheres costumam trabalhar menos horas do que os homens e a inclusão delas deve ter reduzido a média de horas semanais”, afirmou Regina Madalozzo, professora do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

As mulheres, é sempre bom ressaltar, não trabalham menos que os homens, pois em geral acrescentam a atividade profisional às tarefas domésticas.

Outra informação que contradiz a interpretação negativa é a que revela que o percentual de trabalhadores idosos na força de trabalho cresceu 65%.

Do que jeito que é colocada, a matéria procura apenas reforçar a agenda anti-trabalhista retrógrada da grande imprensa brasileira, e que, neste caso, reflete uma mentalidade quase escravocrata segundo a qual a queda no número de trabalhadores que experimentam jornadas extenuantes acima dos tetos estabelecidos pela lei (e em geral, sem sequer receber por isso) seria um fato negativo.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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Daniel

17/01/2012 - 09h52

Bem, lembrei-se Miguel que os donos de Estadões da vida acreditam piamente que assalariado é um “escravo” que só deve existir para servi-los. Escravo ter vida própria? Não ficar 24 horas à disposição do “senhorio”? Isso é inadimissível para a “casa grande”. Podemos já estar em 2012, mas o pensamento das nossas pretensas “elites” continua em 1900

ignez

16/01/2012 - 21h29

Miguel, sua busca não foi em vão. A análise está excelente. Essa famiglia Marinho pensa que não sabemos que construímos a terceira maior cidade do planeta e, que hoje, também pelo trabalho – não roubando riquezas de outros povos; não dizimando populações; não provocando guerras – somos a sétima economia do mundo! As sete famiglias que detém o monopólio da comunicação ainda não conseguiram apropriar-se de nossas consciências. Excelente análise Miguel. Vou salvar para consultar seu conteúdo, sempre.

vbencz

16/01/2012 - 17h24

Nossa. eu tenho nojo de manchetes tendenciosas. Aquelas que fazem vc se sentir um idiota quando clica para ler mais e vê que não é bem assim. Jornalismo sensacionalista e mentiroso. http://garotadistraida.wordpress.com/


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