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Fukuyama, o socialista

Essa poderia entrar na categoria humor. Depois de decretar o fim da história, o cientista político Francis Fukuyama agora defende políticas públicas “populistas”. Se a crise se agravar muito, daqui a alguns anos ele estará citando Mao?

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Essa poderia entrar na categoria humor. Depois de decretar o fim da história, o cientista político Francis Fukuyama agora defende políticas públicas “populistas”. Se a crise se agravar muito, daqui a alguns anos ele estará citando Mao?

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Seja como for, eu admiro pessoas capazes de mudar suas próprias ideias, e Fukuyama demonstrou ter essa flexibilidade. Suas colocações demonstram sensatez e preocupação para com o bem estar concreto das pessoas. Embora evitando usar os devidos termos, um dos papas do neoliberalismo político revela que abandonou muito de seus antigos credos e ataca duramente, embora com muita classe, o conservadorismo antitrabalhista que dominou (e domina até hoje) o ideário das elites norte-americanas. Em determinado ponto, ele chega a cometer o sacrilégio de… defender o aumento de impostos!

Os EUA estão se latino-americanizando?

Uma das coisas que me chocam é que os EUA começam a parecer a velha América Latina. Se você pedir aos ricos que paguem mais impostos, eles vão dizer que não, que o governo desperdiçará o dinheiro com corrupção e serviços de má qualidade.

O desempenho do governo não pode melhorar, já que não tem fundos suficientes, mas ninguém quer pagar mais impostos porque o desempenho é ruim. Os EUA saíram dessa armadilha nos anos 30 e agora voltam a cair.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

O fim do fim da história

CLAUDIA ANTUNES, DO RIO
CIENTISTA POLÍTICO FRANCIS FUKUYAMA DEFENDE ‘NOVO POPULISMO’ E MAIOR REGULAÇÃO ESTATAL CONTRA PROBLEMAS DO LIBERALISMO

O cientista político americano Francis Fukuyama, que há 23 anos previu a vitória global do liberalismo econômico e político no famoso artigo sobre o “fim da história”, está preocupado com o futuro dessa conquista do “século americano”.

Em artigo na primeira edição de 2012 da revista “Foreign Affairs”, ele afirma que a ausência de competição ideológica resultou em políticas ultraliberais regressivas, que acentuam o declínio da classe média nos países desenvolvidos, pondo em risco a própria democracia.

No texto, Fukuyama convoca agentes políticos e teóricos a desenvolverem um “novo populismo”, que “reafirme a supremacia da política democrática sobre a economia”. Ele explica sua proposta, decorrente da preocupação com a “latino-americanização” dos EUA.

Folha – Quando o sr. diz que preceitos do liberalismo viraram pura ideologia, está propondo que a democracia abandone o rótulo “liberal”?

Francis Fukuyama – Não é uma questão de abandonar o liberalismo, é uma questão de grau. Houve uma revolução liderada por [Ronald] Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80 que reduziu o tamanho do Estado e aumentou a liberdade individual.

Essa correção era necessária, mas a revolução foi longe demais e aprisionou os EUA numa ideologia muito rígida.

Uma sociedade liberal será sempre necessária, mas vamos precisar de uma volta de maior regulação estatal e políticas sociais que preservem os ganhos da classe média e encorajem a ascensão dos pobres para a classe média.

O sr. diz que a social-democracia não é uma resposta adequada. Por quê?

Acho que as velhas formas social-democratas não vão funcionar porque em muitos casos o Estado é problemático e não tem a habilidade de implementar políticas.

Isso explica bastante a debilidade da esquerda nos EUA e na Europa. Só uma volta à velha social-democracia não será sustentável fiscalmente nem melhorará os serviços públicos. Esse é o dilema.

Quando o sr. propõe um novo populismo, quais são as referências históricas?

O problema com alguns movimentos populistas é que eles não são democráticos, querem mudanças tão grandes que se apoderam do Estado. Não é o tipo de populismo de que precisamos. Seja o que for, tem que ser na tradição democrática.

Acho que nos EUA há dois precedentes. Um do início do século 20, o movimento progressista liderado por Theodore Roosevelt [1901-09], que teve o objetivo de limpar a política da influência do poder econômico e aprovou leis antitruste que desmembraram o monopólio Rockefeller.

O outro foi, claro, o presidente Franklin Roosevelt [1933-45], que usou a crise dos anos 30 para criar uma coalizão em torno do New Deal que ficou no poder por 40 anos. Todo mundo esperava que Obama fizesse algo semelhante, mas por várias razões -eu acho que ele não era um político habilidoso o bastante- isso não aconteceu. Ele nunca explicou o problema que enfrentamos de maneira mais ampla; as soluções também não tinham amplitude.

O sr. vê nos EUA forças capazes de construir essa ideologia alternativa?

Não, por isso escrevi o artigo. Estamos precisando.

Por que se criou nos EUA e na Europa um fosso entre as medidas contra a crise e os sentimentos das pessoas comuns?

É um mistério. Nos EUA, em contraste com a Europa, boa parte da classe média tendeu, nos últimos 30 anos, a votar nos republicanos, em conservadores, mesmo quando as políticas implementadas por eles prejudicaram seu interesse econômico.

Há razões para isso. Uma é que esse eleitorado tende a ser culturalmente conservador e não se sente representado por democratas ou esquerda tradicional. Outra é o enfraquecimento de sindicatos e organizações sociais.

Finalmente, há na cultura política a crença de que esta é uma terra de oportunidades, de que você pode se dar bem no futuro mesmo que seja pobre agora. Então as pessoas são contra aumento de impostos para os ricos porque, se elas ficarem ricas…

Essa fatia se identificaria mais com o Tea Party do que com o “Ocupe Wall Street”?

Acho que há uma divisão. Houve grande controvérsia a respeito do “Ocupe” porque ele é formado principalmente por jovens, com uma ideologia de esquerda, que não representam os sindicatos ou a classe média trabalhadora em termos mais amplos.

Não aposto muito nas perspectivas do movimento a longo prazo. Sua base social é muito estreita. Se a classe média trabalhadora se mobilizar por políticas mais progressistas, terá a forma de um movimento populista poderoso.

Nos EUA, é a direita que tem sido populista, no ataque às elites culturais, aos poderosos. Ao mesmo tempo, se opõe à regulação financeira, a aumento de impostos. Por que os democratas resistem ao discurso populista?

É outra peculiaridade da cultura política americana. Em certo sentido, a esquerda ainda é dominante na academia, na mídia. A direita tem sido mais bem-sucedida na política, controla hoje as duas casas do Congresso, muitos governos estaduais.

Apesar disso, muita gente de direita ainda acha que os liberais [esquerda, nos EUA] controlam o establishment. Isso não reflete o balanço real de poder, mas o sentimento continua forte e alimenta o ressentimento populista contra as chamadas “elites liberais” que teriam destruído o país. Obama é parte delas.

O sr. associa a força da classe média com a consolidação da democracia, mas em países como China e Índia a nova classe média pode ser bastante conservadora.

O fortalecimento da democracia depende de que proporção da sociedade chega à classe média. Quando a classe média é pequena e parte da elite tradicional, ela vê o governo como protetor de seus interesses e teme que, se houver uma democracia integral, ela sairá perdendo.

É o que acontece na China agora. Na Índia, é mais complicado. A questão lá é que a grande massa de pobres se beneficia da democracia por meio de clientelismo, que a classe média considera como uma forma de corrupção.

Como avalia a democracia em países como Brasil, Indonésia, onde parte dos pobres está entrando no mercado?

Essas democracias estão emergindo justamente porque mais gente começa a alcançar um status de classe média. Mas a situação ainda é muito frágil; se houver uma grande recessão global e a economia brasileira voltar a ter mau desempenho, muitos vão recair na pobreza.

No passado, foi a desigualdade que provocou a polarização política no Brasil e em toda a América Latina, em que se enfrentavam uma direita autoritária e uma esquerda populista que nem sempre tinha compromisso com a democracia liberal. Para superar isso, só criando uma classe média ampla e reduzindo o fosso entre os pobres e a elite privilegiada.

O que é de fato importante no Brasil agora é que a desigualdade está diminuindo, em parte devido ao crescimento econômico, em parte a programas sociais como o Bolsa Família. Mais brasileiros poderão fazer parte da economia, ter propriedades e um maior interesse no sistema político democrático.

Os EUA estão se latino-americanizando?

Uma das coisas que me chocam é que os EUA começam a parecer a velha América Latina. Se você pedir aos ricos que paguem mais impostos, eles vão dizer que não, que o governo desperdiçará o dinheiro com corrupção e serviços de má qualidade.

O desempenho do governo não pode melhorar, já que não tem fundos suficientes, mas ninguém quer pagar mais impostos porque o desempenho é ruim. Os EUA saíram dessa armadilha nos anos 30 e agora voltam a cair.

O seu artigo é uma mudança de 180 graus em relação ao do fim da história?

Não concordo. Eu ainda acredito que a democracia liberal é o melhor sistema político. A questão é que está sob ameaça nos EUA e devemos preservá-la. Meu objetivo é o mesmo, só que em 1989 estávamos nos primeiros anos da virada conservadora e agora a realidade mudou, a desigualdade aumentou, as instituições se deterioraram.

Há um deficit democrático nos EUA e na Europa?

São situações diferentes. O deficit democrático nos EUA tem a ver com o poder do dinheiro e de grupos de interesse, de lobbies, cujo peso no sistema político é desproporcional em relação aos grupos sociais que eles representam. Na Europa em geral, o maior problema não é em cada país, mas em nível europeu, uma vez que a tentativa de integração resultou em instituições falhas, com união monetária mas sem união fiscal.[/s2If]

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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