Segue abaixo um artigo muito bom que encontrei hoje no Valor. Agora, é muito triste que não haja uma cobrança mais rigorosa da imprensa, que assim acaba por associar a barbárie higienista do governo de São Paulo.
Kassab e Alckmin temem o ‘efeito Cracolândia’
Autor(es): Cristiane Agostine | De São Paulo
Valor Econômico – 11/01/2012
A operação na Cracolândia da capital paulista é acompanhada com cautela pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), e pelo governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB). Preocupados com possíveis desgastes político-eleitorais, tanto Kassab quanto Alckmin procuram desvincular-se das ações policiais no centro da cidade, iniciadas há uma semana.
Kassab anunciou, por meio de seus secretários, que não lançará nenhum pacote de obras para a região, tampouco mudará políticas públicas nas áreas de assistência social e saúde voltadas para o atendimento de usuários de drogas. O prefeito teme ser associado a eventuais problemas na região, com desdobramentos da atuação da Polícia Militar. Com a imagem desgastada, Kassab evita prejudicar-se no ano eleitoral, em que tratará de sua sucessão.
Sem apresentar novas medidas para a Cracolândia, Alckmin passou a última semana tentando minimizar o mal-estar com a prefeitura, depois que a operação foi iniciada pelo segundo escalão da PM, sem o conhecimento de Kassab e do próprio governador. Ontem, a Secretaria Estadual de Defesa e Justiça reforçou, em nota, “que as ações de combate ao tráfico de drogas e de assistência aos dependentes químicos vêm sendo planejadas em conjunto com a prefeitura há pelo menos três meses”, dividindo a responsabilidade com Kassab.
As críticas à operação Centro Legal ganharam força ontem, com a instauração de um inquérito civil pelo Ministério Público do Estado de São Paulo para apurar atos de violência. Promotores classificaram as ações como “precipitada”, “desarticulada” e “desastrosa” e analisaram que a operação, que foi pensada há três meses por Kassab e Alckmin, tratou dependentes químicos como caso de polícia, não de saúde.
Na avaliação de analistas políticos, o impacto negativo de problemas da operação deve atingir, a princípio, o prefeito. Apesar de as ações serem comandadas pela Polícia Militar, sob responsabilidade de Alckmin, é Kassab quem cuidará dos programas de assistência social, saúde e habitação para aquela região.
Para o cientista político Rubens Figueiredo, ainda é cedo para analisar a repercussão política. “No entanto, ficou visível que falta articulação entre os governos”. Segundo o cientista político Humberto Dantas, “reforçou-se a imagem de que Alckmin e Kassab não se falam”. “Como há incertezas sobre os resultados da operação, tanto o prefeito quanto o governador preferem observar os fatos à distância. Se der errado, vão falar que foi culpa do segundo escalão da PM. “Se der certo, cada um vai tentar faturar em cima “, disse Dantas.
A ação policial começou um mês antes de a prefeitura inaugurar o complexo Prates – um centro de convivência para os moradores da Cracolândia daquela região, com um albergue com 120 vagas -, e dois meses antes da entrega da unidade de saúde prevista para o complexo. Isso alimentou os rumores da falta de articulação, fato negado publicamente pelas duas gestões.
A vice-prefeita e secretária de Assistência Social, Alda Marco Antonio, disse que a prefeitura já previa a construção do complexo, desvinculando-o da operação Centro Legal, articulada por Alckmin e Kassab e deflagrada pela PM. Segundo Alda, não há previsão de reforço aos investimentos na área social. “Temos 330 agentes atuando. A rede [de assistência] é grande, com 10 mil vagas em albergues, seis tendas (de convivência para moradores de rua). Os usuarios de crack são moradores de rua. O aparato da prefeitura é grande, está preparado. Não tem faltado nada do que a gente precisa”, disse Alda. “Para mim entrou no automático. A secretaria de assistência está fazendo o que sempre fez. Não teve nada de especial. Nada, nada”.
Segundo o Censo da População de Rua 2009/2010, a capital tem 13,6 mil pessoas sem moradia, 3,6 mil a mais do que as vagas em albergues. Destes, 62% vivem no centro.
O secretário municipal de Saúde, Januário Montone, também reforçou que não haverá mudanças em sua Pasta. “Estamos trabalhando lá há dois anos e meio e temos equipes do Programa Saúde nas Ruas, uma adaptação do Programa Saúde da Família, só que para os moradores de rua e viciados”, disse Montone. Segundo o secretário, o governo tem 371 leitos para dependentes químicos, sendo 291 vagas em comunidades terapêuticas (clínicas) privadas e 80 em um hospital municipal. Apesar de dizer que o número de leitos é suficiente para atender à demanda, Montone reclamou da falta de apoio do governo federal para o atendimento a usuários de drogas.
A operação Centro Legal também gerou mal-estar entre as gestões municipal e federal – que buscou se distanciar das ações da PM. “Não temos nenhuma atuação agora na Cracolândia”, disse o secretário de atenção à saúde, Helvécio Miranda Magalhães Junior, do Ministério da Saúde. “Não participamos disso.”
Governos municipal e federal divergiram em relação ao modelo de Consultório de Rua, do ministério. O atendimento em uma van, com profissionais da saúde, não foi aprovado por Kassab, que disse ter um programa semelhante em funcionamento, o Saúde nas Ruas.
Segundo Magalhães, o ministério não vai atuar diretamente na Cracolândia, mas já repassou R$ 3,2 milhões em 2011 para ajudar no financiamento de internações, nas comunidades terapêuticas e na atuação de profissionais nas ruas. Montone, no entanto, disse que os recursos não chegaram e que a ajuda do governo federal é “muito inferior aos custos”, que somam R$ 100 milhões anuais.
Para o líder social Alderon Costa, coordenador de projetos da Rede Rua, os governos estão promovendo políticas higienistas. “Foi muito simbólico divulgarem da mesma forma a quantidade de lixo que tiraram da Cracolândia e o número de pessoas que foram abordadas pela PM. Depois, lavaram as ruas da região. É isso o que eles querem fazer com a população que vive lá. É o lixo, que precisa ser lavado, retirado”, disse. “Não tratam como questão de saúde, mas sim policial. É um equívoco. Assim aumenta os conflitos”.
De acordo com a pesquisa “Prisão Provisória e Lei de Drogas – Um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, de 2011, realizada pelo Núcleo de Violência da Violência da USP, a política de combate às drogas na capital está focada na repressão aos pequenos traficantes, sem mexer de fato do mercado das drogas. Os pesquisadores mostram que a maioria das prisões por tráfico foi de pessoas sem antecedentes criminais, portando pequena quantidade de drogas. Dos presos, 62,13% portavam até 100 gramas de drogas. “O mercado das drogas tem um grande potencial. Se focar o combate no pequeno traficante não vai resolver”, disse a pesquisadora Amanda Hildebrand Oi, uma das responsáveis pelo estudo. “Há uma mão de obra muito grande disponível. Pode-se fazer muitas prisões sem causar impacto profundo no mercado das drogas”.
A pesquisa mostra que as prisões por tráfico de drogas se concentraram nas zonas leste (38,5%) e sul (21,28%), em detrimento ao centro (12,2%). “Isso indica que a atuação da polícia estava em outras regiões. O centro não era a prioridade para as prisões”, comentou Pedro Lagatta, outro pesquisador do estudo.
Segundo os pesquisadores, os governos priorizam a repressão em relação à investigação. Em poucos casos a prisão se deu por investigação da Polícia Civil (9,5%). Em geral, são por ações da PM (85,6%). “Qual é a eficácia de uma política de segurança focada no encarceramento e na prisão de pequenos traficantes, sem reduzir a oferta de drogas?”, questionou Lagatta. “Os grandes traficantes ficam protegidos. O combate ao pequeno traficante não vai eliminar a disponibilidade de crack. Se os usuários conseguirem a droga, vão voltar para onde estavam”.
O arquiteto urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Polis, aponta outro problema: a falta de moradia para a população que vive nas ruas da Cracolândia. O projeto Nova Luz, de revitalização da região, não tem proposta de moradia para os que vivem lá, diz Nakano. “Não há uma política [de moradia] para essa população.”