Pelo jeito, todos os próceres do jornalismo tupi terminam o ano fazendo loas a si mesmos e posando de vítima. Essa coluna do Merval, publicada hoje no Globo, merece ser lida porque traz informações pertinentes às políticas de Cristina Kirchnner em relação à mídia. Tenho que estudar mais atentamente as circunstâncias em que se dá o conflito entre a Casa Rosada e a mídia local. Algumas observações críticas do Merval me levam a pensar que Cristina pode ser melhor do que eu imaginava. Ao mesmo tempo, precisamos também ver os aspectos negativos. Seja como for, o quadro argentino é um verdadeiro cinema no qual poderemos assistir a um estágio avançado de deterioração nas relações entre imprensa e poder político, que talvez seja para onde também caminhamos no Brasil.
A discussão fica para depois do Natal.
Ataque à imprensa – MERVAL PEREIRA
O GLOBO – 22/12/11
As duas ações recentes do governo da Argentina contra o grupo jornalístico Clarín, o maior do país, fazem parte de uma já longa disputa pelo controle da informação pelo governo de Cristina Kirchner, prosseguindo o projeto que foi iniciado no governo de seu falecido marido, Nestor Kirchner.
Uma tentativa de cercear a liberdade de imprensa que é jogada em todos os níveis, empresariais e jornalísticos, auxiliada pela já tristemente famosa “Ley dos Medios”, que pretende limitar a atuação dos grupos independentes.
A sede da TV a cabo do grupo, a Cablevisión, foi invadida por militares, que davam cobertura à ação da Justiça devido a uma denúncia do Grupo Vila-Manzano, proprietário do Supercanal, concorrente do Clarín na TV a cabo e aliado de Cristina Kirchner.
Ao mesmo tempo, o governo argentino aprovou na Câmara um projeto que desapropria a fábrica Papel Prensa, que pertence ao Clarín (49%) e ao La Nacion (22,5%), declarando o papel para jornal “um bem de interesse público”.
Além da parte de mídia impressa, eles são fortes na TV a cabo, com mais de 3,5 milhões de assinantes. O “Clarín” (com 600 mil exemplares de circulação aos domingos, e 320 mil de segunda a sábado) é o maior diário de língua espanhola. O grupo tem também 1,2 milhão de assinantes do serviço de banda larga (internet), cuja licença também foi cassada e é outro assunto levado à Justiça.
Na Argentina não há cadeias de TV como aqui, só pode haver redes de emissoras próprias. As redes são formadas por emissoras do mesmo grupo: o Clarín tem 4 canais (Buenos Aires, Baía Blanca, Córdoba e Bariloche).
A outra rede é a Telefé, da Telefónica (Espanha), canal 9. Também ao contrário do Brasil, o mercado de TV aberta na Argentina é muito pequeno, e a TV a cabo se desenvolveu mais, por isso o ataque à Cablevisión.
O canal a cabo do Clarín Todo Notícias, emissora all-news, é líder de audiência, mas o sinal não trafega no sistema público. No último dia do governo de Néstor Kirchner, ele aprovou a compra que o grupo CIarín fez da Cablevisión, para fundir com sua própria empresa de cabo, mas agora a Casa Rosada tenta desfazer a operação, de maneira ilegítima.
A TV pública, a única que tem rede nacional, é usada para ataques diretos à mídia independente, a seus diretores e jornalistas.
O governo está montando uma rede digital terrestre cujo sinal será dado gratuitamente às famílias de baixa renda. Além disso, criou três jornais, lança rádios e TV a cabo, sustenta tudo com publicidade oficial.
Há recursos transferidos até de verbas secretas da agência nacional de segurança (equivalente à Abin brasileira), um grande aparato oficial e paraoficial.
No avanço sobre o Clarin, o governo impediu que o grupo continuasse a transmitir o campeonato de futebol. O contrato que havia com a Associação de Futebol Argentino (AFA) foi revogado, e o governo abriu o sinal para quem quiser.
A fábrica Papel Prensa tem uma produção anual em torno de 170 mil toneladas, que representa 75% da demanda, abastecendo 130 meios de comunicação impressos.
O grupo Clarín comprou a fábrica do controvertido banqueiro David Gravier, que foi, entre outras coisas, banqueiro dos Tupamaros, que, com ele, aplicavam dinheiro obtido em sequstros.
O Grupo Clarín negociou a compra da fábrica com o irmão de Gravier depois que o banqueiro morreu em um acidente aéreo. A Casa Rosada reescreveu a história da operação, criando a versão de que Gravier foi pressionado pelos militares a vender a fábrica, o que o próprio irmão do banqueiro nega.
Como se trata da única produtora de papel de imprensa da Argentina, a Casa Rosada subjugaria os dois grupos independentes.
Sindicatos, aliados do grupo Kirchner, já paralisaram a fábrica por 12 dias, algo inédito na história da Papel Prensa (uma paralisação isolada, sem ser numa greve geral).
Um vídeo produzido pelo grupo impressiona pela escalada de violência. Mostra, entre outras, cenas de discursos duros e agressivos de Néstor Kirchner e Cristina contra o Clarín e seus executivos .
Há passagens de coletivas em que repórteres do jornal são espezinhados, registros de militantes kirchenistas/peronistas atacando o grupo (como a líder das Mães da Praça de Myo, Hebe de Bonafini), e assim por diante.
As madres se transformaram num braço da Casa Rosada. Exemplo gritante é o caso dos filhos adotivos da acionista e herdeira do Clarin Ernestina de Noble, outro flanco pelo qual o governo ataca, no caso, para atingir moralmente os acionistas do Clarin.
Surgiu uma família dizendo que os filhos adotivos de Ernestina (um casal hoje na faixa dos 34 anos) seriam seus netos, filhos de presos políticos desaparecidos. Ou seja, militares teriam repassado as crianças a Ernestina.
O casal aceitou fazer o teste de DNA. O congresso anterior, sob controle dos Kirchner, aprovou então uma lei passando o banco nacional genético argentino para controle direto do Executivo.
E mais: proibindo a realização de contraprovas. Os Noble, então, dispuseram-se a fazer o teste, mas apenas com o corpo médico forense.
Um dia, depois de o casal atender a uma convocação da Justiça, foi apanhado na rua pela polícia, levado à força para casa e lá teve as roupas que usava confiscadas. O objetivo era colher material para o teste de DNA.
Como até hoje o governo nada fala, supõe-se que ele deu negativo, contra os interesses da Casa Rosada.