Zuenir Ventura é um cara legal, que escreveu livros legais, como “1968, o ano que não terminou” e “Cidade Partida”. Tive o privilégio de ler ambos. Todo mundo gosta do Zuenir. Inclusive eu. Mas é duro ser colunista do Globo sem aderir a todos aqueles clichês antipolíticos e lacerdistas que empestiam o ambiente platinado. E o Zuenir é um cara tranquilo, e caras tranquilos não querem ver caras feias nas vernissages que frequentam no Leblon. Então ele se tornou, apesar de sua inteligência (ou melhor, por causa dela), uma espécie de colunista meia boca, apresentando sempre algum pensamento aparentemente óbvio naquele estilo cult de jornalista-de-esquerda-que-escreve-pro-globo. Quando o bicho pega, ele se faz de desentendido, contemplando o linchamento de longe, com ar enfastiado. Ou então, se olham para ele com uma expressão tipo “você não vai participar? está do nosso lado ou não”, ele se aproxima e dá um chutinho de má vontade na vítima. De vez em quando alguém na redação deve se irritar com seu lacerdismo light, mas o problema se resolve apostando na juventude, cujos representantes no Globo são disciplinados e fanáticos como soldados da Coréia do Norte. Refiro-me especificamente ao colunismo político, onde o ambiente ideológico é rigorosamente controlado.
Com essa postura, porém, Zuenir jamais diz jamais nada de novo, não contribui em nada para o debate político, mas também não desagrada seus amigos mais politizados, não violenta em demasia a sua consciência, continua recebendo seu salário, e ajuda o Globo a vender a imagem de jornal democrático que ainda dá espaço para alguns medalhões da esquerda septuagenária.
Enfim, Zuenir tornou-se um personagem perfeito para o romance psicológico que um dia eu gostaria de escrever.
O seu texto de hoje é um bom exemplo. Aparentemente é uma crônica leve, no estilo que talvez minha mãe gostaria que eu escrevesse, em vez dessas coisas mais pesadas que a assustam. No fundo, todavia, disfarçados pelo estilo culto e elegante, encontramos erros grosseiros e conclusões estapafúrdias. É incrível o trabalho necessário para desconstruir, metodica e cientificamente, um texto tão bobinho à primeira vista.
Vou fazer comentários intercalados em negrito e itálico.
VENTO ANARQUISTA
Por Zuenir Ventura, artigo publicado no Globo 30/11/2011.
Quem chamou a atenção para o que classificou de “enigma” foi o historiador e deputado pelo Parlamento Europeu Rui Tavares em recente artigo intitulado “A vingança do anarquista”. Ele perguntava por que os mercados apertavam o cerco em torno de Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália, e não incomodavam a Bélgica, que tinha uma dívida pública maior do que a portuguesa e, ainda por cima, estava sem governo eleito. Apesar disso, “a economia belga é a que mais cresceu na zona euro nos últimos tempos, ou seja, sete vezes mais do que a alemã”.
A comparação da Bélgica, um dos países mais industrializados do mundo, com outras nações européias é leviana. A fragilidade de uma economia não se resume à dívida pública, mas numa série de outros fatores. A renda per capita da Bélgica, por exemplo, é bem superior a dos outros países citados. E olha que a renda per capita também nem diz muito nesse caso. A comparação, portanto, é apenas uma gracinha. Eficaz, mas leviana, porque se pretende séria enquanto joga no ar informações totalmente descontextualizadas. Quero crer que isso também é uma das razões da crise financeira mundial, essa irresponsabilidade das grandes mídias no tratamento de informações fundamentais.
Então lá fui eu na Eurostat, a agência estatística da União Européia, para comparar o dinamismo da economia dos países mencionados na crônica de Zuenir. Confiram isso:
A exportação total da Bélgica em 2010 foi de $ 308 bilhões de euros, o que para uma população de 10,9 milhões de habitantes configura uma exportação per capita de $ 28,15 mil euros, mais de cinco vezes superior a qualquer dos outros países citados. Ou seja, a dívida pública belga pode até ser superior a de outros países, mas a geração de divisas realizada por esse pequeno e enérgico país é incomparável!
Tavares ressaltava que isso aconteceu não “apesar”, mas “graças” à situação singular dessa monarquia parlamentar que, “desgovernada” há 19 meses, desconhecia medidas de austeridade, recessão, arrocho, demissões e cortes de programas sociais. Desse modo, concluía o articulista, “a economia cresce de forma mais saudável, ajuda a diminuir o déficit e a pagar a dívida”. Sede da União Europeia e da Otan, a Bélgica bateu o Iraque na categoria país sem governo, e não fez da crise política uma tragédia; preferiu enfrentá-la com bom humor e comemorar, chamando-a de Revolução da Batata Frita, como paródia à Revolução de Jasmim tunisiana e em homenagem ao prato nacional. Os jornais chegaram a fazer piada. Um anunciou em manchete: “Finalmente campeões do mundo”; outro celebrou, também com autoironia, o feito negativo inédito: “Recorde batido!”
A argumentação faz uma chantagem emocional e apelativa no início, que lhe dá um charminho enganoso de esquerda, mas traz um erro básico: a premissa de que foram medidas de austeridade que provocaram a crise na Europa. A austeridade neoliberal é um terrível equívoco, mas que está sendo feito agora, depois da crise. Nos últimos vinte anos, os países em crise passaram ao largo do neoliberalismo, embora eles defendessem a sua aplicação no terceiro mundo. Outros erros:
- Insinuar que a Bélgica teria crescido por causa de sua situação governamental e não pelo dinamismo de sua economia.
- Dizer que não há governo na Bélgica. Ora, pode não haver um primeiro-ministro ou presidente, mas as agências estatais funcionam; as administrações locais permanecem normais. A comparação com o Iraque é uma piada para os belgas, mas somente uma piada; é um absurdo que esse português a leve a sério, e que Zuenir a reproduza para milhões de brasileiros.
Nos anos 70, o economista Edmar Bacha descreveu como Belíndia um país fictício, desigual e injusto, onde conviviam dois povos, um que tinha o padrão de vida da pequena e rica Bélgica e outro que lembrava a pobreza da Índia. Era o Brasil da época dos militares. Agora, o reino belga está sendo fonte de inspiração para outra fábula – a utopia anarquista de que não só é possível sobreviver sem governo como se vive até melhor sem ele.
Eu gostei da utopia anarquista por alguns anos, durante a universidade, mas depois vi que ainda é uma teoria que precisa ser construída e aprimorada conceitualmente e experimentada por muitos séculos antes de se transformar numa ideologia séria. A conclusão de que a Bélgica serve de exemplo para o anarquismo, porém, é irresponsável e reacionária, pelos seguintes motivos:
- A Bélgica está sem governo central há 19 meses, mas tem um governo forte há séculos. E repito o argumento: está sem governo, mas o Estado é presente, através de agências estatais, infra-estrutura estatal, além das administrações locais.
- A Bélgica, sede da União Européia, que é outra forma de governo.
- É um equívoco, portanto, dizer que se trata de um exemplo da utopia anarquista.
Em tempos de descrença nas instituições, quando os jovens estão indo às praças públicas protestar em várias partes do mundo, independentemente de regime, ideologia ou credo, sabendo mais o que não querem do que o que querem, o exemplo belga pode exercer um grande fascínio, principalmente se considerarmos que nessa estação de tantas “primaveras” insurrecionais um pouco do vento da anarquia está soprando.
Gostaria de acreditar nisso, mas essa análise não tem sentido.
Já imaginou se a velha moda do “hay gobierno, soy contra” se espalha? No Brasil, onde o comportamento da Câmara e do Senado leva muita gente a sonhar com o seu fechamento por desnecessários, a experiência belga poderia ser adotada durante pelo menos alguns meses. Como se trata de um exercício de fantasia do tipo “o que não tem governo nem nunca terá”, da música de Chico Buarque, quem sabe assim o país não funcionaria melhor? Uma coisa parece certa: sem ministros e ministérios, a corrupção seria menor.
Então chegamos ao objetivo principal do texto, que se revela portanto decididamente reacionário, somando-se a campanha da mídia brasileira contra as instituições políticas. Que pesquisa Zuenir usou para afirmar que “o comportameto da Câmara e do Senado leva muita gente a sonhar com seu fechamento por desnecessários”? E mesmo que isso constasse numa pesquisa, a afirmação de Zuenir é típica de um “intelectual midiático orgânico”, para parodiar o conceito de Gramsci. A mídia faz campanhas sistemáticas para desmerecer o parlamento, aí faz pesquisas para averiguar até onde sua pesquisa deu resultado, e a usa para continuar fazendo campanha, numa ação destruidora circular.
O fim do texto é exemplar e – me desculpe dizer isso meu gentilíssimo Zuenir! – positivamente idiota. Quer dizer que os ministérios são a origem da corrupção no país? Não existe corrupção nas empresas, nos jornais, nas ruas, nas casas? Na realidade, falar que a corrupção seria menor sem os ministérios é um raciocínio puramente lusitano (com perdão do meus queridos amigos portugueses). Se eu andar de bolso vazio pelas ruas, certamente não serei roubado. Se eu permanecer deitado na cama o dia inteiro, reduzirei drasticamente os riscos de tropeçar na rua. Da mesma forma, se não tivessemos ministérios, não haveria corrupção… nos ministérios.
A conclusão, portanto, consiste naquele lacerdismo light, mas tão ou mais perigoso e intoxicante que um editorial do José Neumanne no Estadão. Zuenir parece achar que o seu chutinho blasé não terá importância, já que todos estão dando paulada aos gritos no corpo caído. Mas tem importância sim, Zuenir, porque o chute pode ser discreto, em termos físicos; moralmente, contudo, corresponde ao mesmo lacerdismo sem escrúpulos que tanto já fez sofrer o país, e que você, lamentavelmente, pusilanimemente, reverbera.