Gostei muito dessa entrevista com a escritora libanesa Joumana Haddad, falando da realidade da mulher no mundo árabe, da primavera árabe e da mulher de forma geral.
O mundo árabe está caindo aos pedaços, diz escritora libanesa
Joumana Haddad teme extremismo e questiona democracia sem participação da mulher
20/11/2011 – 07h00 | O Globo
RIO – “Não posso me dar o luxo de ser otimista. No Líbano, somos treinados para a decepção.” É de forma cética, mas sem perder o sorriso, que a escritora Joumana Haddad olha para a Primavera Árabe e para o papel da mulher no período $ós-revolucionário. Em sua opinião, as ditaduras serão seguidas por outra forma de opressão, o extremismo religioso, e somente após isso os árabes conseguirão romper um círculo vicioso e se libertar. “As pessoas não vão compreender o quanto o extremismo religioso é terrível até sentirem a pressão de viver sob ele”, disse a autora de “Eu matei Sherazade” (Editora Record), durante sua visita ao Rio. Criadora da revista erótica “Jasad” e editora do jornal libanês “An-Nahar”, Joumana acredita que a mulher árabe tem parte da responsabilidade por sua condição e compara “aceitar ser tratada como um pedaço de carne” a usar a burca.
Muitas mulheres estão participando da Primavera Árabe. Esse movimento pode trazer mais direitos para elas?
JOUMANA HADDAD: Sempre me pergunto por que isso (a Primavera Árabe) demorou tanto. Estou feliz em ver as mulheres nas ruas, mas sou cética. Na Tunísia e no Egito, todas essas mulheres que saíram às ruas praticamente desapareceram na pós-revolução, no momento de formar as novas estruturas. Há muita conversa sobre mudanças e democracia, mas nada sobre o papel da mulher, direitos, igualdade. Não há credibilidade ao se falar em democracia sem se falar nos direitos da mulher. O que temo é que, no mundo árabe, estamos acostumados a escolher entre dois monstros. O monstro das ditaduras está caindo. Mas o outro monstro, o extremismo religioso, está mostrando o seu rosto mais e mais a cada dia. E ele também é muito perigoso. Mas acho que esse é um passo necessário para o mundo árabe atravessar. Ver que o extremismo é tão terrível quanto as ditaduras, para só então começar a pensar no futuro e realmente lutar por liberdade. Então, acho que é muito cedo para dizer se algo vai mudar no mundo árabe. Não estou otimista.
Essa situação poderia levar a um regime fundamentalista?
JOUMANA: Sim, sim. Acho que isso vai acontecer. Não sou analista política, mas vejo a direção que a coisa vai tomando em Tunísia, Egito, Líbia. Não estou dizendo que as ditaduras deveriam ter permanecido. Digo que o que vem depois delas é outra forma de opressão. E espero que depois dela acabe esse purgatório. As pessoas não vão compreender o quanto o extremismo religioso é terrível até sentirem a pressão de viver sob ele.
No seu livro, a senhora fala da multiplicação do obscurantismo no mundo árabe… Como ele se apresenta?
JOUMANA: Onde eu vou vejo uma queda, o mundo árabe está aos pedaços. Quando comparo o que era o mundo e a cultura árabes mil anos atrás, só posso pensar que estamos retrocedendo, que os obscurantistas estão se multiplicando como fungos. É visível a olho nu. O que eu via nas ruas do Cairo dez anos atrás não é o que vejo agora. Estive no Cairo uma semana antes do início da revolução e não vi nas ruas uma só mulher que não estivesse com os cabelos cobertos. Quem sai assim (aponta para os próprios cabelos soltos) é assediada e sujeita a muitas formas de violência. Há essa tendência por todos os lados. Isso não me deixa esperançosa. Não posso me dar o luxo de ser otimista. Eu venho do Líbano. No Líbano, somos treinados para a decepção. Acho que mais decepções nos esperam no mundo árabe antes de conseguirmos romper esse círculo vicioso.
A senhora se mostra furiosa diante da possibilidade de ser vista como uma mulher oprimida apenas por ser árabe, mas é a situação da maioria, não?
JOUMANA: Sim, porque quando se diz mulher árabe qual a primeira imagem que vem à mente? Véu, opressão, vítima. Isso existe e é a maioria. Quero dizer que há uma minoria que é diferente, que está lutando para conseguir uma vida melhor para ela e para as outras, e que merece ser vista e ouvida. Porque se lhe dermos voz e ferramentas, ela terá uma grande chance de mudar a vida das demais.
Na festa literária de Pernambuco, na qual esteve antes de vir ao Rio, a senhora disse que as mulheres são tão culpadas quanto os homens por sua condição. Por quê?
JOUMANA: Não se trata de culpar a vítima, mas de dar responsabilidade. Muitas vezes, preferem dizer: “Sou uma vítima, não sou dona do meu destino.” E se rendem. Eu acredito na responsabilidade, e com a responsabilidade vem o poder. Se acredito que parte é minha escolha, posso tentar mudar. As mulheres na Arábia Saudita dizem: “O que podemos fazer? Sequer podemos dirigir um carro.” Mas elas têm um poder muito grande: a maternidade. Por que não educam filhos e filhas para romperem esse círculo vicioso? Dizem que a mulher é livre no Líbano porque pode dançar, vestir o que quiser. Mas se lermos as leis libanesas, vamos nos sentir humilhadas. São leis medievais que tratam a mulher como cidadã de segunda classe. Se uma libanesa se casar com um estrangeiro, não pode dar sua nacionalidade aos filhos, ao contrário do homem. Não há lei para proteger a libanesa da violência doméstica. Apenas recentemente cancelaram as leis de crimes de honra. Num divórcio, a mulher sempre perde a guarda dos filhos.
É fácil para um ocidental ver uma mulher de burca e dizer: aí está uma pessoa oprimida. Para a senhora, é fácil detectar a opressão à mulher no Ocidente, por exemplo no Brasil?
JOUMANA: Claro. Vi muitas mulheres oprimidas aqui. Mulheres que aceitam ser tratadas como um pedaço de carne. Isso não é diferente da burca. É o mesmo. Num caso, o sistema patriarcal obriga a mulher a anular sua presença com o véu. No outro, os mesmos valores patriarcais forçam as mulheres, às vezes de forma inconsciente, a aceitarem ser tratadas como um acessório de sedução para satisfazer os olhares, em vez de ver sua verdadeira identidade e seguir suas ambições e sonhos, em vez de apenas negociar com os homens como Sherazade, e foi por isso que eu a matei.